Título: 'A gente não tem pra onde ir, moço'
Autor: Macedo, Fausto
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/03/2007, Nacional, p. A21

- Você é brasileira?

- Sim senhor.

- O seu marido?

- É brasileiro.

- Os seus filhos?

- São todos do Brasil.

- A Patrícia tem algum documento?

- Não.

- Nenhum permisso?

- Não.

- Tem ciência de que estão clandestinamente em território da Bolívia?

- Sei disso.

- Vocês invadiram a Bolívia.

- A gente não tem pra onde ir, moço.

- Mas vão ter que sair daqui, desocupar.

Maria Decilda do Nascimento ouviu a reprimenda com o coração apertado, à porta do casebre que ela e a filharada ocupam na Comunidade São Luiz, que fica além da Villa Busch e antes da Puente Abaroa, a 60 quilômetros da fronteira com o Brasil.

Era um sábado à tarde, em fevereiro. Da Toyota roxa saltaram dois homens e uma mulher.Apenas um deles falou. Não exibiu nenhum documento oficial, não deixou notificação. Mas foi ríspido com a brasileira. 'Ele veio pra intimidar', ela conta, com seu mais novo no colo, Elivélton, de 8 meses.

Faz dois anos que Decilda chegou por aqui. Veio do acampamento de lona do seringal Porto Rico, no interior da Bolívia, mas o medo da onça que andou fazendo estragos na floresta a fez mudar de imediato para o barraco de ripas de madeira.

O lugar ela divide em dois cômodos com uma cortina de pano rasgado. Um cômodo é a cozinha, que não tem fogão nem geladeira, e o outro tem uma cama de casal, uma de solteiro e uma rede onde os filhos se revezam à noite. Os filhos de Decilda não têm brilho nos olhos. São crianças raquíticas, que parecem à espera da salvação.

Depois de Decilda veio a sogra, dona Francisca Freire Dias, de 62 anos, 12 filhos e netos 'de uns 30 prá lá'.

E depois da Francisca vieram mais sete famílias, na miséria como ela, que habitam barracos iguais.

A comunidade São Luiz é isso, um amontoado de brasileiros sem água, esgoto, luz, escola e hospital. Vivem de centavos, que amealham vez por outra, quando tem algum serviço braçal.

Mais que um naco de carne, que não sabe o que é faz tempo, Decilda quer os filhos no estudo, pelo menos os menores. Do outro lado do ramal, como chamam aqui as estradinhas de terra, fica a Escola Amiga, que é municipal. Mas os professores bolivianos ensinam a sua língua. As crianças brasileiras não conseguem acompanhar.

Arnaldo Araújo Freire, de 31 anos, o companheiro de Decilda, passa a semana inteira fora. É um brasileiro sem documento e sem profissão certa. Ele faz o que tem para fazer. Ora na roça, ora na serraria em Epitaciolândia, do lado brasileiro.

A noite cai. Os sete casebres somem na escuridão. 'Zezinho, vai lá pegar o isqueiro com a dona Chica', manda Decilda. José Welington, 9 anos, dá uma carreira e apanha o isqueiro. Decilda acende a lamparina, que ilumina um canto do barraco.

Dali a pouco chega o vizinho Fidélis Soares, de 27 anos, a roupa encharcada de suor. Foram 15 quilômetros de batida. Na mão direita ele carrega uma fieira de seis Piauçus, peixe que dá na região. 'Tive sorte.'

Francisco, 30, filho de dona Chica, apanha o machado, golpeia o tronco de árvore no chão e a lenha em ripas alimenta o fogo para o peixe.

Ele diz que não tem medo da Bolívia. 'A gente vai ver aí. O pessoal (os agentes da imigração) assusta um pouco, mas só que a gente não faz nada de errado.'

'Eu disse pro homem que também tem muito boliviano ilegal no Brasil', lembra Decilda.