Título: Diplomacia deve integrar estratégia
Autor: Kissinger, Henry
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/03/2007, Internacional, p. A16

Chegou o momento de se iniciar a preparação de uma conferência internacional para definir o desfecho político da guerra do Iraque. Aconteça o que acontecer, será necessária uma fase diplomática. O Iraque terá de retornar, de alguma maneira, à comunidade internacional. Suas tensões internas continuarão tentadoras para intervenções externas, e essas não poderão ser efetivamente barradas se não houver alguns princípios acertados. Os interesses conflitantes de vários países precisam ser contidos por uma combinação de equilíbrio de poder e um acordo de legitimidade para impor uma sanção internacional a quem violar esse equilíbrio.

A convocação de uma conferência internacional seria um passo importante para lidar com uma chocante anomalia da política internacional contemporânea. Os Estados Unidos são amplamente condenados por sua conduta na guerra do Iraque, embora nenhum país esteja disposto a participar de uma avaliação séria das implicações políticas de desfechos previsíveis. Mas nenhum será poupado. Se os EUA não conseguirem alcançar seus objetivos imediatos - se campos terroristas ou regimes terroristas emergirem no solo do Iraque, respaldados por seus imensos recursos petrolíferos -, nenhum país com população muçulmana significativa será capaz de escapar das conseqüências: nem a Índia, com a segunda maior população muçulmana do mundo; nem a Indonésia, com a maior; nem a Turquia, já às voltas com incursões da parte curda do Iraque; nem Malásia, Paquistão, ou qualquer país da Europa Ocidental; nem a Rússia, com seu sul muçulmano; nem, por fim, a China.

Se a guerra do Iraque culminar num Irã nuclear (como uma conseqüência indireta) e num fundamentalismo islâmico que pode alegar que expulsou a Rússia do Afeganistão e os EUA do Iraque, será inevitável um período de extrema turbulência convergindo para o caos, e ele não se confinará ao Oriente Médio. Uma ameaça aos suprimentos globais de petróleo causaria um forte impacto na economia mundial, especialmente nas economias dos países industrializados. Nenhuma das vítimas potenciais dessas tendências tem sido solicitada a contribuir com idéias, e muito menos foi mobilizada na busca de uma solução 'política'.

No entanto, o que tem sido mais freqüentemente debatido é se a diplomacia deveria ao menos ser invocada. A administração, seguindo uma linha de conduta americana para com a diplomacia, tem sugerido que ainda não está pronta para negociar sobre o Iraque - pelo menos não diretamente - com o Irã e a Síria, que são acusados de fomentar o conflito e estimular a violência.

Os críticos da administração insistem num recurso imediato à diplomacia sem nunca definir o que querem dizer com isso. Muitos deles refletem a disseminada nostalgia americana de uma estratégia militar imaculada culminando numa vitória total, sucedida por uma diplomacia imaculada operando por suas próprias regras internas. A rejeição da máxima de Clausewitz (general prussiano que nasceu em 1780 e morreu em 1831) da relação entre poder e diplomacia trata o processo da diplomacia como distinto, regido por sua lógica autônoma. Por esse ponto de vista, a diplomacia é alimentada por uma demonstração de boa vontade e deve ser promovida por uma constante prontidão para romper impasses com novas propostas. As operações militares deveriam ser reduzidas ou interrompidas como o preço para se entrar na fase diplomática. A escalada militar, mesmo que temporária, é proscrita. Essa atitude fez os EUA aceitarem, no início das negociações para pôr fim às guerras da Coréia e do Vietnã, um cessar-fogo na Coréia e a suspensão dos bombardeios no Vietnã. A conseqüência nos dois casos foi um impasse prolongado.

Desde o início da controvérsia, em 2002, sobre o uso da força contra o Iraque, e depois, defendi a decisão de derrubar Saddam, mas também argumentei que nenhum desfecho no meio do mundo árabe poderia se apoiar na exclusiva imposição da força militar. A diplomacia deveria ser tratada sempre como uma parte integrante da estratégia no Iraque.

O debate contemporâneo sobre o fim da guerra do Iraque conferiu uma qualidade quase mítica à oportunidade de negociações bilaterais com a Síria e o Irã como a chave para um acordo. A disposição de negociar não será suficiente, porém, a menos que os princípios e objetivos de ambos os lados possam ser trazidos ao alcance de um acordo tolerável. Essa será uma tarefa imensa.

O diplomata precisa compreender o mínimo abaixo do qual um acordo põe em risco a segurança nacional e o máximo além do qual é contraproducente esperar que o outro lado aceite (em outras palavras, os requisitos mínimos do adversário). Ir além dessas limitações implica o risco de se criar um beco sem saída ou a deterioração da segurança dos EUA.

A Síria e o Irã são países fracos que se vêem temporariamente fortes. Os EUA continuam sendo uma superpotência apesar de terem se metido numa posição extremamente complicada e potencialmente desvantajosa. Mas isso não alterou as relações de poder de longo prazo. São necessários líderes sábios em todos os lados para estabelecer uma ordem internacional que proporcione segurança a todos os participantes e respeito a todas as religiões.

Somente alguns dos objetivos dos EUA, Síria e Irã podem ser preenchidos por negociações bilaterais. O papel da Síria no Iraque, para melhor ou pior, é limitado. Seus objetivos principais são recuperar sua influência dominante no Líbano e a devolução das Colinas de Golan por Israel.

Os EUA, que só recentemente se tornaram a parte principal na expulsão de tropas sírias do Líbano, não estão em posição de oferecer à Síria uma posição dominante no Líbano.

A Síria pode sentir-se muito desconfortável com o impacto crescente do Hezbollah apoiado pelo Irã no Líbano, mas ela aprecia ainda menos a dominação americana; aliás, ela se utiliza da entrega de armas ao Hezbollah precisamente para minar a influência americana em Beirute. Os EUA não possuem incentivos ou ameaças suficientes para induzir a Síria a abandonar seu relacionamento estreito com o Irã, que tem sido um elemento decisivo da política síria durante 20 anos.

Uma devolução das Colinas de Golan à Síria pode ser facilitada por um diálogo sírio-americano, já que as partes estavam perto de um acordo durante a administração de Bill Clinton. Mas isso exigiria uma negociação sírio-israelense, talvez sob a égide americana, levando a um acordo de paz em separado entre Israel e Síria.

Existem limitações semelhantes em relação a negociações bilaterais com o Irã com respeito ao Iraque. O problema das ambições nucleares do Irã só pode ser resolvido no contexto do arcabouço multilateral que já existe, ou de alguma alternativa que envolva as outras potências nucleares. Uma agenda para uma negociação puramente bilateral sobre o Iraque excluindo os sunitas parecerá no mundo sunita uma potencial associação americana-iraniana ou o início de um abandono americano. Com isso, ela poderia acionar um surto de aquiescência à hegemonia iraniana.

A principal utilidade de conversações bilaterais americano-iranianas é o restabelecimento de uma relação, interrompida durante quase três décadas, para definir princípios para um retorno à normalidade. Os líderes do Irã devem ser levados a compreender que os EUA, mesmo no que parece um período de divisão doméstica, em última instância não permitirão uma hegemonia hostil sobre uma região tão decisiva para o bem-estar do mundo industrializado. Insultar uma superpotência é perigoso, e existem alternativas construtivas se o Irã buscar objetivos nacionais em vez de jihadistas ou imperiais. A recente mudança do tom diplomático do Irã possivelmente foi influenciada pelas demonstrações de determinação e poder dos EUA. Ao mesmo tempo, na execução de sua tática, os EUA precisam ser sensíveis aos complexos de nações mais fracas com passados coloniais.

O melhor impulso a uma diplomacia séria sobre o Iraque é por meio da conferência internacional descrita mais atrás. Os vizinhos do Iraque estão muito envolvidos em disputas uns com os outros para poderem estabelecer sozinhos o equilíbrio, seja psicológico, seja de segurança, para uma conferência regional. A moldura política precisa ser criada por países com interesse no desfecho. Esses incluiriam os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU; vizinhos do Iraque; países islâmicos decisivos como Índia, Paquistão, Indonésia e Malásia; e grandes consumidores de petróleo como Alemanha e Japão. Esses países têm muitos interesses conflitantes, mas deveriam ter um interesse comum em impedir que o fanatismo jihadista empurre o mundo para um conflito em permanente ampliação. A conferência internacional também poderia ser uma ocasião para se ir além das facções beligerantes no Iraque, para um abastecimento estável de energia. Seria o melhor cenário para uma transição da ocupação militar americana. Paradoxalmente, pode se mostrar o melhor cenário para discussões bilaterais com Síria e Irã. A política militar americana no Iraque deve se relacionar com uma estratégia diplomática. Os EUA não podem se dar ao luxo de determinar suas ações exclusivamente por sua relevância para considerações domésticas. A retirada unilateral em cronogramas fixados, não relacionados às condições locais, é incompatível com a diplomacia aqui descrita.

A disposição de outros países de participarem num esforço desses depende muito de sua avaliação do equilíbrio de poder no Oriente Médio depois do fim da guerra no Iraque. Uma diplomacia bem-sucedida requer que o poder americano continue relevante e disponível em apoio a uma política regional coerente.

Depois da Guerra dos Trinta Anos, as nações da Europa organizaram uma conferência internacional para estabelecer regras para o fim da guerra, depois que esta deixou o continente prostrado e exaurido. O mundo agora tem uma oportunidade comparável. Será que ele a agarrará enquanto tem uma margem de decisão, ou terá que esperar até que exaustão e desespero não deixem outra alternativa?