Título: Raciocínio, vocabulário e dignidade, frutos da alfabetização científica
Autor: Girardi, Giovana
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/03/2007, Vida&, p. A18
'Como é que a gente enxerga?' Munida com um modelo de olho humano desmontável, lanternas e lentes, a professora Sandra Mutarelli Setúbal instiga um grupo de estudantes a descobrir a resposta.
Integrantes de turmas de educação de jovens e adultos (EJA), alguns mal acabaram de aprender a ler e a escrever, mas já experimentam um outro tipo de alfabetização - a científica.
Fuçando na maquete, experimentando o efeito de jogar um facho de luz nos olhos dos colegas, aos poucos eles entendem que a resposta é mais complexa do que um mero 'vemos pelos olhos', como todos arriscaram no começo.
Só depois de acender e apagar a lanterna repetidas vezes perto do olho de Cris (Maria Cristina Soares Ribeiro, de 29 anos), o amigo Chico (Francisco de Assis dos Santos, de 57) percebe que a 'bolinha preta' aumenta e diminui.
Acompanhado de perto pela reportagem do Estado, Chico capricha no português: 'Acho que há uma certa dilatação'. Sandra se empolga com a resposta e vai dando mais corda até que todos percebam por onde a luz entra nos olhos - 'a bolinha diminui quando tem muita luz e aumenta quando tem pouca'. E, com auxílio de lentes, desenhos em folhas transparências e retroprojetor, todos concluam como é que enxergamos.
A descoberta é quase um momento mágico. Cris desenhou uma flor na transparência, colocou a folha em frente ao projetor e uma lente entre a imagem e a tela. A idéia era simular o processo de visão, com a lente sendo o olho; e a tela, o cérebro.
'O que a lente faz com a imagem?', pergunta Sandra. Cris olha, vira a cabeça, não entende no começo, mas logo saca: 'Ah! Vemos ao contrário'. Ela só cuida para falar baixinho e não estragar a surpresa dos demais. 'Mas se fica de cabeça para baixo, como é que vemos certo?', questiona depois a turma. Bom, aí é o cérebro quem se encarrega de pôr a imagem no lugar.
Esses homens e mulheres, que não puderam ir à escola quando crianças, migrantes que foram ganhar a vida em São Paulo, ainda apanham na hora de se expressar por escrito. É com as aulas de ciência que eles desenvolvem o raciocínio, aprendem como funcionam coisas do seu dia-a-dia e, de quebra, ampliam o vocabulário.
CIÊNCIA PARA ADULTO VER
Eles fazem parte de uma iniciativa pioneira criada em 2002 por Sandra no Colégio Vera Cruz, em São Paulo, com jovens e adultos carentes da região.
A idéia desde o princípio foi promover o aprendizado a partir de experimentos. Trata-se de uma adaptação do projeto Mão na Massa, desenvolvido pela Estação Ciência para alunos da 1ª à 4ª série do ensino fundamental do Estado. Mas com gente grande, logo Sandra percebeu, a conversa é outra, e o ensino também tem de ser.
Para começar, a professora sente que há nesses alunos especiais uma espécie de urgência em aprender. 'Eles acham que já perderam muito tempo na vida. Não estamos falando para adultos, mas com adultos. Temos de aproveitar a vivência de cada um, mostrar que o conhecimento de vida que eles têm é importante e ao mesmo tempo ajudá-los a perceber que existe um pensador, um descobridor dentro de cada um', explica.
Formada em Química, Sandra, que há alguns anos encontrou a vocação para o ensino de ciências, defende que o mais importante de tudo é ajudar a formar um cidadão pensante, que possa entender o mundo que o cerca, articular sobre ele, e que seja capaz de tomar decisões.
'Alfabetizar cientificamente significa romper barreiras, mudar pontos de vista. Quando a pessoa vive afastada do mundo letrado, é difícil para ela fazer articulações. O ensino de ciência promove isso de um modo muito racional. O aluno tira conclusões por ele mesmo, a partir dos experimentos que ele fez e dos resultados que ele viu.' Com isso, não só absorve o novo conhecimento como também o respectivo vocabulário, observa a professora.
'Depois de testar em laboratório um processo de filtragem da água, por exemplo, ele passa a entender que filtrar - a palavra nova - é o mesmo que coar - a palavra que ele já conhece. A informação fica retida, porque ele viu acontecendo. Escrever um relatório sobre o experimento em seguida fica muito fácil. E a ciência acaba virando um instrumento da alfabetização.'
Por meio desse projeto, explica Sandra, os estudantes aprendem a observar, investigar, raciocinar, discutir os resultados e argumentar, baseando-se em dados experimentais. 'Todo o processo é registrado na forma de relatório, que prepara para formulação de textos cada vez mais complexos. Mais e mais o educando aprende a fazer afirmações fundamentadas.'
MUNDO NOVO
A 'turma-cobaia' de Sandra, que conversou com a reportagem, atesta os resultados. Cris, por exemplo, aprendeu as transformações dos três estados da matéria há uns dois anos, mas de pronto soube responder o que era fusão quando questionada de surpresa por Sandra.
'Eu fiquei lá medindo a temperatura da água até o gelo virar líquido. Encasquetei com o fato de que a temperatura não saia do zero enquanto houvesse gelo. Mas ao final entendi que fundir é o mesmo que derreter', conta. 'Diferente das crianças, às vezes a gente não acredita muito no que o professor diz. Se alguém me falasse que a gente vê invertido, eu iria duvidar, afinal, eu vejo do jeito certo. Mas, com a experiência, a gente passa a ter certeza.'
Para Chico, o mais importante foi começar a perceber o mundo de outra forma e encarar as relações com outras pessoas com muito mais segurança. 'Antes eu só conversava com os outros olhando para baixo. Agora não tenho mais vergonha. Olho como um igual', conta.
Moacir Alves Cardoso, de 34 anos, diz que já sentiu a diferença até no trabalho. 'Toda vez que eu tinha de escrever alguma coisa, era uma negação. O texto saía sem pé nem cabeça. Até um dia que eu tive de organizar um relatório na firma. Na hora fiquei com medo, aí comecei a lembrar do passo a passo dos nossos experimentos. Vi que pondo a mão na massa, as aulas de ciência me ajudaram a organizar o pensamento. Passei isso para o trabalho, fui pensando em cada etapa e consegui escrever.'
O projeto-piloto com o Vera Cruz deu tão certo que ele começa a ser implementado neste ano em centros de Educação de Jovens e Adultos da Prefeitura de São Paulo. Por enquanto apenas uma escola vai participar da experiência, mas a idéia é expandi-la ao longo do ano para todos os centros voltados para esses estudantes no município.
Sandra já está dando treinamento para as professoras regulares de uma escola no Parque Maria Helena, no Capão Redondo, e as aulas estão previstas para ter início na primeira escola ainda neste mês.