Título: 'Não dá para investir e ganhar sempre'
Autor: Tereza, Irany e Ciarelli, Mônica
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/03/2007, Economia, p. B5
Em julho, o advogado Marcelo Trindade despede-se da presidência da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), após três anos à frente da autarquia que regulamenta e fiscaliza o mercado de capitais. Neste fim de mandato, ele se vê às voltas com a polêmica da utilização dos recursos do FGTS nos projetos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), inclusive para aquisição de ações de empresas negociadas em bolsa. Ele não concorda com o que chama de 'incentivo artificial' do mercado acionário e alerta para os riscos da operação, tanto para os investidores quanto para o mercado. Cita a reviravolta da bolsa chinesa e as reverberações que provocou no resto do mundo para mostrar o risco que o trabalhador correrá de perder o que aplicou no momento de sacar o fundo. 'Essa situação de crise vai se perpetuar? Claro que não, mas pode acontecer exatamente na hora que você for mandado embora (do emprego). E aí?' A seguir os principais trechos da entrevista, concedida na quarta-feira, um dia depois da primeira queda da Bolsa de Xangai.
Como se dará a proteção ao pequeno investidor na Bolsa de Valores?
A melhor proteção nunca será o Estado. Nunca será a CVM. Sempre será a análise que ele fizer do investimento. Isto é, não há como a CVM se colocar no seu lugar e tomar uma decisão de investimento, analisar a compatibilidade do investimento com as necessidades dele. Portanto, ele tem que ser seu principal protetor.
Mas a CVM não protege o pequeno investidor?
Embora se fale que as regras da CVM têm tentado proteger mais o investidor, na verdade, o que tentamos fazer é reconhecer que há diferença entre os níveis de informação dos diversos tipos de investidores. Tentamos fazer com que as regras relativas à informação reconheçam essa diferença. Que, para os investidores com menos capacidade de analisar a informação, eventualmente, o acesso a certos produtos seja limitado ou o caminho para chegar a esses produtos envolva um terceiro, como um gestor de fundo. Essa é a primeira atuação da CVM: chamar a atenção do investidor de que a melhor defesa é a educação, a informação.
Há semelhanças entre a tentativa de massificação do mercado com o Fundo 157, nos anos 70, e agora, com a proposta do uso de FGTS? O risco é o mesmo?
Não. São situações diferentes, mas guardam semelhanças, que devem determinar precauções em relação a essa hipótese. Primeiro, os recursos do FGTS, assim como os destinados a pagamento de impostos, não estão disponíveis. A diferença é que um é dinheiro do Fisco e o outro, do contribuinte. A tendência é que se trate melhor o próprio dinheiro do que o do Fisco. Que se acompanhe melhor o investimento feito com o dinheiro do FGTS do que o feito com dinheiro do governo.
Como evitar uma bolha na Bolsa?
Atualmente, as pessoas estão voltando ou passando a conhecer o mercado. Muita gente está indo pela primeira vez. Mas está fazendo isso com seu próprio dinheiro. Quando a gente faz isso com o nosso dinheiro, ou põe tão pouco dinheiro que não se incomoda de perder ou põe mais dinheiro e pensa muito antes. Existem duas barreiras muito importantes para um investimento não refletido. A primeira é não ceder à tentação de incentivar artificialmente o acesso ao mercado de capitais. Não posso chamar as pessoas para o mercado, mas deixar que as pessoas venham quando sentirem necessidade de aumentar a rentabilidade de seus recursos. A segunda barreira é fiscalizar esse mercado com muita atenção. E punir as pessoas que fazem coisas erradas com bastante rapidez e eficiência. Perder faz parte da rotina do mercado. A perda é um elemento necessário, essencial de qualquer investimentos. É impossível investir e ganhar sempre, como a terça-feira nos mostra.
Levando em conta que o FGTS paga apenas TR mais 3% ao ano, as pessoas imaginam que nenhum outro investimento vá render menos.
Não, muitos vão te dar muito menos que isso. E, em muitos, você vai perder o que investiu. Mesmo com um grande mix de aplicação, se houver uma crise sistêmica, perde. No caso do FGTS, quando se é demitido, a Caixa Econômica Federal vai pagar o que o contribuinte tem direito mais TR, mais 3% ao ano. O que há, nesse caso, é o risco governo. O Tesouro Nacional, em última análise, é quem vai pagar isso. No outro caso (aplicação em ações), você estará correndo o risco de empresas, que podem quebrar. Muitas podem quebrar ao mesmo tempo. O mercado pode despencar, todo ele. Isso vai acontecer durante dez anos? Claro que não. Essa situação de crise vai se perpetuar? Claro que não. Mas ela pode acontecer exatamente na hora que você for mandado embora (do emprego). E aí?
Difícil é convencer o pequeno investidor do risco, ante o êxito dos fundos FGTS Vale e Petrobrás.
Depende de como essa informação chega ao investidor. Se for mostrado, por exemplo, que a Vale caiu 8% ontem (dia 27) e esse podia ser o dia da demissão dele... Existe essa semelhança (entre o fundo157 e FGTS). São recursos que estão represados, com os quais eu não tenho total liberdade, portanto eu tenho um estímulo não natural ao investimento. Na cabeça do investidor a lógica é: poxa, TR mais 3% qualquer um paga'. Esse dinheiro até podia estar em outro lugar, rendendo mais. Mas podia estar perdendo também.
Não há possibilidade real de o trabalhador ter a garantia desses 3% mais TR?
No caso do fundo de ações isso nem está sendo discutido. Minha percepção é que a gente deve tratar a questão do FGTS pelo fluxo, não pelo estoque. Isto é, o dinheiro que está no fundo fica lá. Da contribuição mensal que estou recebendo, pego um pedaço e coloco por mês em um fundo de ações. Pode-se também dar opções de investimento. Por que só ações? Por que não Tesouro direto? Isso dá mais que TR mais 3% ao ano hoje. Por que não um fundo de renda fixa, um fundo multimercado?
Porque o governo tem interesse de desenvolver o mercado.
E essas outras coisas não desenvolvem? Os recursos que eu aplicar no Tesouro Direto não vão para o Tesouro Nacional, portanto, não vão para o País? Estou dizendo que ele (investidor) tem de ter opção para realmente tomar uma decisão. Se eu, por exemplo, não preciso do FGTS, não dependo dele para nada, eu topo arriscar 100% do FGTS em ações. Outro trabalhador vai dizer que quer comprar títulos do governo, outro que quer colocar metade em títulos do governo e metade em títulos de renda fixa privados. Por que esse dinheiro tem que ser diferente do que está no meu bolso? Por que tem de ser carimbado no destino? O que estou dizendo é que hoje há uma lei que diz que todo o dinheiro (do FGTS) tem de ser aplicado no setor imobiliário. Está valendo essa regra. Se o Executivo e o Legislativo entender que tem de ser isso ou ações, OK. A CVM vai regulamentar. O que estou colocando em discussão é: será que isso contribui para a formação de uma cultura de investimento? Acho que contribui mais se houver opção de investir mais em outras coisas.
Esse incentivo artificial traz o risco de uma bolha no mercado?
É difícil responder se isso é capaz de criar um risco. Para se ter uma idéia, em 2006 foram R$ 33 bilhões de emissões de ações. Este ano, já temos R$ 21 bilhões. Temos, no total do ano, R$ 32 bilhões em todos os valores mobiliários. É claro que a gente está em um momento de mercado aquecido. O total dos recursos do FGTS que se decidir investir pode ser pouco para o tamanho do mercado e, por isso, não vai ter capacidade de gerar bolha. Mesmo assim, pode ser muito dinheiro, dependendo do momento. O que eu estou dizendo é que temos que tomar cuidado, acompanhar. Se for decidido abrir o mercado de ações para o FGTS, temos de pensar em todos os riscos, abrir um debate público com as questões que estão por trás disso. Temos de tomar cuidado para não criar riscos numa coisa que está funcionando maravilhosamente bem, como o mercado brasileiro. Não precisamos nos preocupar em incentivar o mercado, mas sim em corrigir defeitos que eventualmente ainda tenha.
O ENTREVISTADO
Marcelo Fernandez Trindade é advogado, coordenador do curso de Direito Societário e Mercado de Capitais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e professor da PUC-RJ. Foi diretor da Comissão de Valores Mobiliários de dezembro de 2000 a abril de 2002. Em junho de 2004 assumiu a presidência da instituição.