Título: 80 anos sem Julio Mesquita
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Fonte: O Estado de São Paulo, 15/03/2007, Vida&, p. A20

Há 80 anos, morria Julio Mesquita, o criador da imprensa moderna no Brasil. A obra começou em novembro de 1888, momento em que o jovem de 26 anos, alto, com cabelos claros, olhos azuis, bigode aparado com esmero, constante otimismo e bom humor, começou a trabalhar como gerente deste jornal, então chamado A Província de São Paulo.

O cargo era o segundo mais importante. Num tempo em que a especialização era pequena, ele deveria cuidar da administração do empreendimento, mas com participação ativa na redação.

As credenciais para sua contratação vinham de uma combinação de artigos feitos como colaborador com militância nos setores mais radicais do republicanismo. No momento de sua chegada, ambos os quesitos valiam bastante, num periódico fundado por pessoas ligadas ao Partido Republicano Paulista. O gerente estreava como jornalista de um órgão destinado a servir um grupo de leitores com interesses políticos afins. Tratava-se de um jornal partidário, como eram os jornais dos primeiros dois terços do século 19 em todo o mundo.

O tamanho da mudança produzida por Julio Mesquita pode ser medido em números. Quando começou, o jornal tirava em torno de 4 mil exemplares, o bastante para disputar a liderança do mercado local. No dia de sua morte, ocorrida no dia 15 de março de 1927, há exatos 80 anos, a situação era outra. Ao longo de 39 anos de trabalho, tempo em que ele passou de funcionário a empresário, transformou O Estado de S. Paulo (título que veio com o regime republicano) numa publicação de importância nacional, feita no maior parque gráfico ao sul do Equador e com uma tiragem que chegava aos 60 mil exemplares diários - num tempo em que São Paulo tinha 570 mil habitantes, mais da metade analfabetos.

INFORMAÇÃO EM DESTAQUE

A mudança não foi apenas quantitativa. A obra de Julio Mesquita consistiu principalmente em impor mudanças de concepção. Afastou a publicação do modelo partidário e deixou como herança um jornal nos moldes que conhecemos hoje: produtor de relatos de eventos em suas reportagens e fornecedor de análises em editoriais e artigos. Esta mudança arraigou-se de tal modo que hoje o modelo criado pelo pioneiro é visto como natural.

Os próprios métodos de Julio Mesquita ajudaram muito nesta invisibilidade. A regra de ouro do jornalismo partidário era dar destaque ao artigo assinado pelo diretor ou o gerente do jornal, sempre candidatos a intervir no mundo político, publicando-o no alto da primeira página. Porém, desde que assumiu seu posto, o novo gerente defendeu como norma o anonimato dos textos de redatores. Tinha explicações para o comportamento: um texto sem assinatura valia muito mais que outro assinado; enquanto este último trazia sempre uma opinião pessoal, o anonimato permitia construir textos que fossem mais neutros, e por isso mais valiosos para o público; representariam o jornal todo, não apenas um de seus membros.

Era um conjunto de argumentos então quase impossível de aceitar para a imensa maioria dos jornalistas, sempre sonhando em colocar seu nome na página do jornal e no jogo político.

Para fazer valer a fundamental mudança, Julio Mesquita aplicou a norma a si mesmo, levando outros a seguir o caminho. Derrubada a regra de ouro do artigo assinado, o método do exemplo pessoal serviu para implantar outras modificações. Julio Mesquita acreditava que todos os textos do jornal deveriam se submeter a uma norma única de gramática e estilo, imposta por profissionais especializados. Nem mesmo os textos dele escapavam, sendo sempre submetidos a revisão antes de publicados. A nova situação logo trouxe para o centro da cena os relatos de eventos, as reportagens, que não se confundiam nem com artigos assinados nem com interpretações partidárias.

VENDAS AVULSAS

As preocupações de Julio Mesquita com seus leitores não se limitaram a trazer a reportagem para o centro da cena. No jornalismo partidário, as vendas avulsas pouco importavam. O alvo prioritário era a influência sobre os poucos homens com força no jogo do poder. Para chegar a estes poucos, valia até entregar exemplar com prejuízo. O novo gerente também mudou esta situação. Assim que entrou no jornal, deu uma atenção nunca vista à venda de exemplares avulsos. Embora A Província de São Paulo tivesse sido o primeiro jornal da cidade a empregar vendedores de rua - o primeiro deles foi o francês Bernard Grégoire, cuja figura estilizada apregoando o produto com buzina tocada em lombo de burro aparece até hoje no ex-Libris (selo usado por bibliófilos geralmente na contracapa de publicações, no qual consta o nome de seu proprietário) da página 3 - estes tinham uma função quase marginal no faturamento.

Três semanas depois de tomar posse, Julio Mesquita aproveitou um evento político trágico - a morte de alguns populares numa manifestação republicana reprimida pela polícia - para lançar uma campanha: doar a receita das vendas avulsas de uma edição para as famílias das vítimas. Neste dia, a redação se encheu de voluntários para a tarefa de vender jornais; no final da tarde, haviam sido vendidos 9 mil exemplares, mais que o dobro do recorde anterior.

A contenção do espaço de promoção pessoal deixou pessoas importantes muito insatisfeitas. O interesse geral prevalecendo sobre a carreira política particular tornava o investimento em cotas do jornal pouco interessante para muitos de seus detentores originais, interessados em dividendos de natureza política. Pouco sensíveis aos resultados econômicos crescentes, acabaram vendendo suas cotas para o gerente, que aos poucos se tornou o proprietário.

CANUDOS

Enquanto se livrava das últimas peias, Julio Mesquita pôde acelerar as mudanças. Na noite de 7 de março de 1897, milhares de pessoas começaram a se aglomerar na porta da redação, que ficava na atual Praça Antonio Prado. Queriam confirmação dos rumores de um massacre da coluna do coronel Moreira César, em Canudos. Os primeiros exemplares da edição do dia seguinte começaram a ser vendidos ali mesmo - e ao final do dia 8 esgotaram-se 18.442 exemplares.

Apesar do sucesso nas ruas, o material publicado naquele dia não chegava a ser exatamente um primor de objetividade: era mais uma interpretação editorial republicana, ao molde partidário, que um relato da morte dos militares. Julio Mesquita demorou pouco para mudar a situação. Contratou Euclides da Cunha como correspondente de guerra, do modo que faziam os jornais modernos, e também para escrever um livro a partir de suas reportagens.

O material produzido por este contrato seria a síntese da mudança introduzida no modo de fazer jornal - e de ver o mundo - que se construía. Euclides da Cunha partiu como um jornalista partidário. Enquanto ia no navio, escrevia verdadeiros editoriais para a causa republicana. Mas, chegando ao local dos fatos, em vez de ser fiel à causa, foi fiel ao que constatou no ambiente da guerra, ainda visitando soldados feridos em Salvador. Do que ouviu, depreendeu que Antonio Conselheiro não era um militante monarquista, mas apenas um sertanejo firme em suas crenças, ¿um grande homem pelo avesso¿, segundo definiu em sua primeira verdadeira reportagem.

Ao longo da primeira década do século, a tiragem quase dobrou novamente, chegando à casa dos 20 mil exemplares diários; o noticiário se tornou, de longe, o mais isento da cidade; a credibilidade trouxe leitores de todos os matizes políticos, e com eles os anunciantes tiveram confiança para pagar pela inserção de mensagens. Vencia a nova idéia, de não fazer jornal para buscar cargos ou favores com dinheiro público - e a prova era que o governo era tratado como um anunciante qualquer, que gerava em torno de 3% da receita do empreendimento, sempre pagando a preço de tabela.

Ao longo dos quatro anos da 1ª Guerra Mundial, Julio Mesquita publicou um boletim que resumia os acontecimentos da semana. Tudo do jornalismo moderno estava ali: a busca da objetividade, a apresentação de várias versões do mesmo fato, a concisão do relato.

E isto já não estava apenas no trabalho pessoal do jornalista, mas em todo o jornal - como se viu na greve geral de 1917. O noticiário tão imparcial como possível e os editoriais que reconheciam a justeza das reivindicações operárias provocaram uma reação inesperada. Patrões, operários e governo não confiavam uns nos outros e não conseguiam negociar - até se lembrarem da única instituição da cidade com credibilidade suficiente para ouvir vários lados e fiar um acordo. Foram todos para a redação do jornal, onde se resolveu o assunto numa mesa presidida por Julio Mesquita.

Era o reconhecimento geral da existência de uma nova comunidade, feita de valores partilhados entre o jornal e seus leitores. Uma comunidade que já não estava apenas numa obra pessoal, mas na instituição.

O ÚLTIMO EDITORIAL

Julio Mesquita reforçou o movimento preparando sua retirada do dia-a-dia. Foi um gesto tão simples como seus hábitos pessoais. Investia todos os lucros na empresa, e levava uma vida espartana: era acionista remediado de um empreendimento rico. Com esta modéstia, já viúvo e com os nove filhos criados, escolheu viver num modesto quarto de hotel da Campinas natal.

Vinha a São Paulo de quando em quando. Em março de 1927 teve um motivo especial para aceitar convite dos filhos: comemorar as primeiras vitórias eleitorais de alguns candidatos contra a máquina estatal na história republicana. Fiel a seu espírito boêmio, juntou ao programa uma passada pelo baile de carnaval do Automóvel Clube. Dona Olívia Guedes Penteado, a mecenas dos modernistas, veio tirá-lo para dançar. Ele respondeu que, sendo ela a convidar, estava muito lisonjeado, mas que devia confessar que, sendo um velho, não sabia os passos da música que estava sendo tocada. E convidou-a para se juntar à roda de prosa que varou a madrugada.

No dia seguinte foi para a redação, invadido por um sentimento de nostalgia. E escreveu um editorial que lembrava as eleições do império, as frustrações democráticas da república, para reafirmar as esperanças na autonomia das prerrogativas dos cidadãos. Por isso, escrevia: ¿A política infielmente praticada tudo perverte. Ia-se criando entre nós, por incessante acumulação de privilégios odiosos, uma casta que, para si mesma, ideara e estabelecera uma justiça especial¿.

Terminando de escrever, o homem que confiava no controle dos privilégios estatais deixou a redação. Antes que suas últimas palavras fossem impressas começou a sentir-se mal. O diagnóstico foi infecção intestinal, sem cura naqueles tempos. Depois de alguns dias de agonia, morreu em sua casa da Avenida Angélica - casa de portas abertas para a família, os amigos e os cidadãos que apareciam oferecendo conforto e partilhando as crenças defendidas pelo jornal moderno que Julio Mesquita criou.