Título: A demonização do BC
Autor: Kuntz, Rolf
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/03/2007, Economia, p. B2

É um erro dizer que o segundo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda não começou. Começou, sim, e muito mal, com um programa de crescimento mal-ajambrado, um projeto suspeitíssimo de criação de uma TV do Executivo e um esforço cada vez mais evidente do ministro da Fazenda, Guido Mantega, de intervir no Banco Central (BC) e de impor um tom petista à política macroeconômica. Ontem, o ministro procurou desfazer a má impressão causada por seus comentários da véspera sobre a política de juros. Alegou ter sido mal interpretado, declarou-se a favor do controle da inflação e disse que o BC já faz precisamente aquilo que ele havia apontado como recomendável: perseguir o centro da meta fixada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Mas não houve má interpretação. 'O BC tem, sim, de cumprir a meta de 4,5%', dissera Guido Mantega no Congresso. 'Isso será determinado ao BC.' Em seus comentários, havia ressaltado que a autoridade monetária terá de buscar aquele objetivo, e não um número mais baixo. O governo, segundo Mantega, 'não tem uma pauta conservadora'. A tentativa de conserto, ontem, foi inútil. Depois de alguma retórica sobre como seria bom alcançar uma inflação menor com uma política monetária mais flexível, deu o recado essencial: 'O que não podemos é perseguir uma inflação menor que sacrifique o crescimento.' Mas terá ocorrido isso em 2006? Esse é o ponto de vista de críticos do BC, como o senador Aloizio Mercadante (PT-SP), novo presidente da Comissão de Assuntos Econômicos. O ministro da Fazenda nunca se opôs claramente a essa interpretação. Ao contrário: a cada nova declaração, ele deixa entender, intencionalmente ou não, que a sua opinião é essa, o que também não é novidade. Esse ponto de vista parece revelar - aqui, sim - um grave e preocupante mal-entendido. Sintonia fina, em política monetária, não é sinônimo de videogame. Com base num enorme conjunto de informações, o Comitê de Política Monetária (Copom) e seus similares noutros países fazem ajustes graduais na taxa de juros, procurando adaptá-la, pouco a pouco, às condições emergentes e às perspectivas que se desenham. A autoridade monetária não pode, no entanto, reagir a cada novo estímulo como se estivesse envolvido num joguinho de agilidade diante de uma tela. Isso é o que se espera do especulador de Bolsa, não de quem administra a moeda de um país. Cuidar da moeda se assemelha muito mais a conduzir um caminhão pesado e enorme do que a dirigir um carrinho esporte. Boa parte dos que dão palpite sobre política de juros parece não perceber essa diferença. Mas a obsessão dos críticos pela política monetária - e o ministro se inclui, sem dúvida, nesse grupo - justifica outras preocupações. Eles falam do baixo crescimento brasileiro como se os juros altos fossem o principal entrave a remover, se não o único. Tudo se descreve como se uma política de juros mais frouxa bastasse para abrir espaço a uma expansão duradoura da atividade econômica. O problema, portanto, está no BC. Se é esse o diagnóstico certo, o remédio é demitir o presidente da instituição, mudar a diretoria e constituir um Copom mais afinado com a ambição de maior crescimento econômico. De fato, o ministro da Fazenda e alguns de seus colegas têm trabalhado para isso. Por enquanto, deram certo as pressões pela remoção do diretor de Política Econômica Afonso Bevilaqua, considerado o mais conservador dos conservadores, mas um arranjo interno promovido pelo presidente Henrique Meirelles parece ter neutralizado a manobra. Como o BC não é formalmente autônomo, os ataques poderão continuar, e com maior sucesso, desde que o presidente da República seja convencido a patrocinar a mudança. Até agora, ele não deu sinais de estar disposto a assumir o risco. Ele sabe que Meirelles é seu avalista perante o mercado financeiro no País e no exterior. Continuará, portanto, o impasse, com o País condenado a um crescimento medíocre ainda por muito tempo? Não, se o presidente perceber também que o grande entrave não é a política monetária, mas o próprio governo, com seus gastos improdutivos e sem controle, que só se financiam com a manutenção de uma carga tributária absurda. Mas o presidente se recusa a falar em controle de gastos e seu ministro da Fazenda, até agora, não fez mais do que sancionar, com escandalosa passividade, toda pressão por maiores despesas correntes. É este o nó. A campanha contra o BC é um exorcismo inútil, porque o demônio mora noutro lugar.