Título: Coréia do Norte é aula de proliferação
Autor: Bernstein, Jeremy
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/03/2007, Internacional, p. A22
O acordo de desarmamento nuclear assinado pela Coréia do Norte no mês passado certamente deve ser aplaudido como um primeiro passo necessário para melhorar as relações com os EUA. Embora boa parte do programa norte-coreano esteja envolta em mistério, existem algumas coisas que sabemos, incluindo a natureza e a situação dos reatores do país.
O único reator em funcionamento da Coréia do Norte, em Yongbyon, usa urânio natural como combustível e grafite como moderador (a substância que desacelera os nêutrons e aprimora a reação de fissão). Esses são os mesmos ingredientes usados no primeiro reator já projetado, que foi testado por Enrico Fermin na Universidade de Chicago em 1942.
A estimativa mais otimista é que Yongbyon tenha produzido cerca de 45 quilos de plutônio desde que entrou em operação, em 1990. Isto é o suficiente para seis a oito bombas nucleares, dependendo de seu projeto. (Os norte-coreanos talvez tenham usado 6 quilos em seu teste de 9 de outubro.) Antes do acordo firmado com EUA, China, Coréia do Sul, Rússia e Japão, a Coréia do Norte aparentemente já havia suspendido a construção de reatores maiores, por várias razões técnicas.
Os norte-coreanos têm sido razoavelmente transparentes em relação a seu programa de reatores, mas quase totalmente obscuros sobre seus programas para tornar o urânio natural adequado para armas nucleares usando centrífugas. Sabemos que tal programa existe, mas não sabemos onde fica nem quanto urânio, se algum, já foi enriquecido. As centrífugas são muito mais fáceis de esconder do que os reatores. A origem do programa de centrífugas norte-coreano é um aula valiosa sobre proliferação nuclear. Ele remonta à primavera (no Hemisfério Norte) de 1945, quando os russos estavam avançando na Alemanha. Com o Exército veio uma equipe de físicos nucleares que estavam procurando tanto por físicos alemães como por urânio metálico.
O urânio metálico tinha sido feito em grandes quantidades - toneladas dele - pela empresa Auer, uma subsidiária da companhia química Degussa, em parte usando mão-de-obra escrava dos campos de concentração. Os soviéticos conseguiram levar para casa cerca de 300 toneladas de urânio processado.
Graças à espionagem, os soviéticos souberam onde e quem procurar. (Os EUA tinham um programa semelhante, chamado Alsos, que competiu por muitas das mesmas pessoas.) Os soviéticos arregimentaram um talentoso inventor de dispositivos eletrônicos chamado Manfred von Ardenne, que ganhou muito dinheiro e tinha uma grande propriedade nos arredores de Berlim, onde mantinha um laboratório com um programa nuclear financiado pela Empresa de Correios da Alemanha.
Em maio de 1945, os soviéticos enviaram o dr. Ardenne para o leste com alguns de seus colegas e equipamentos. Em junho, ele já tinha estabelecido um laboratório, o Instituto A, em Sukhumi, na Geórgia. Nas redondezas, mais um laboratório, o Instituto G, já tinha sido criado por Gustav Hertz, um físico alemão de ascendência judaica que compartilhou o Prêmio Nobel de Física de 1925. O dr. Hertz trabalhou na empresa Siemens durante o período nazista.
Os cientistas de Sukhumi receberam ordens para que descobrissem métodos de separar isótopos de urânio. O dr. Hertz escolheu estudar a difusão gasosa. Para separar o isótopo mais leve, o urânio 235, necessário para fabricar as armas, forçava-se a passagem do gás hexafluoreto de urânio através de minúsculos poros de uma membrana. O dr. Ardenne experimentou fazer a separação usando campos eletromagnéticos, uma técnica também usada no programa americano de separação de urânio em Oak Ridge, Tennessee.
Um terceiro grupo, chefiado por um físico chamado Max Steenbeck, pesquisou a centrífuga. O dr. Steenbeck, que fora detido pelos soviéticos e levado para um campo de concentração na Polônia, estivera encarregado da pesquisa para a divisão da Siemens que lidava com aeronaves. Enquanto estava no cativeiro, ele escreveu uma carta para a polícia secreta soviética explicando sua experiência científica e também acabou indo para Sukhumi. O dr. Steenbeck começou com um pequeno grupo e algumas centrífugas soviéticas antiquadas, que certamente não poderiam ser usadas para separar isótopos de urânio.
Um físico austríaco chamado Gernot Zippe se juntou a eles no verão de 1946. O dr. Zippe estivera na Luftwaffe durante a guerra e, depois de ter sido preso no verão de 1946, foi de um campo de prisioneiros para Sukhumi, graças à iniciativa de Ardenne. Zippe e Steenbeck nunca tinham trabalhado com centrífugas, mas em dois anos criaram a melhor centrífuga do mundo - embora, na época, não soubessem disso. (Para dar uma idéia da capacidade dela, um centrífuga típica de laboratório realiza alguns milhares de rotações por minuto, enquanto a centrífuga Zippe - este é o nome como é conhecida, embora o próprio dr. Zippe se refira a ela como a ¿centrífuga russa¿ - é capaz de fazer 90 mil rotações por minuto.) Em 1956, Zippe obteve licença para voltar para a Alemanha.
Apesar de ele não ter levado qualquer documento consigo, conseguiu reconstruir seu trabalho e começou a prestar consultoria para várias empresas interessadas em centrífugas, entre elas a Degussa. As empresas privadas alemãs, incluindo o setor da Degussa que estava fazendo centrífugas, foram estatizadas em 1964. Em 1970, essas empresas estatais se tornaram parte de um consórcio chamado Urenco. Os holandeses da Urenco tinham uma filial em Almelo e, em 1972, o cientista nuclear paquistanês chamado Abdul Qadir Khan ingressou na empresa. Fluente em holandês e alemão, recebeu a tarefa de traduzir os planos da centrífuga do alemão para o holandês. Assim, ficou familiarizado tanto com a versão alemã como com a holandesa da centrífuga Zippe.
Em 1974, a Índia testou um dispositivo nuclear com sucesso, e o então presidente do Paquistão, Zulfikar Ali Bhutto, convocou todos os cientistas paquistaneses a voltar para casa para ajudar a fazer uma bomba. O dr. Khan foi um dos que atenderam ao chamado, levando consigo os projetos da centrífuga Zippe furtados. Aqui não é o lugar para entrar em detalhes sobre as atividades do dr. Khan que, no final, envolveram uma série de países, da Líbia à China - sem falar no Irã, cujas centrífugas também são de origem paquistanesa.
Na década de 90, o dr. Khan estava trocando informações sobre armas com os norte-coreanos por informações semelhantes sobre mísseis de longo alcance. Sabemos que deu a eles os projetos para construção da centrífuga - e, provavelmente, centrífugas de amostra. Não sabemos se ele lhes deu projetos para construção de uma arma nuclear, como fizera com os líbios. Também, não sabemos até que ponto o governo do Paquistão foi cúmplice disso. O Exército certamente foi. Foram usados aviões militares para transportar o material. O Paquistão negou qualquer envolvimento no caso, o dr. Khan está em prisão domiciliar e nenhum agente estrangeiro recebeu autorização para entrevistá-lo.
A contragosto, os norte-coreanos admitiram ter um programa de centrífugas. Tal programa, se fosse restrito, teria sido permitido pelo Tratado de Não-Proliferação Nuclear. Mas os norte-coreanos teriam de declará-lo à Agência Internacional de Energia Atômica, que, então, teria o direito de inspecioná-lo. Só que eles não fizeram isso. Talvez gostem da ambigüidade. Minha aposta é que, se tiverem um programa ativo, este é relativamente pequeno.
Embora o acordo que fizemos com eles até agora não tenha dito nada sobre este programa, obviamente precisamos insistir em conhecer sua extensão. O caminho que partiu dos prisioneiros de guerra soviéticos e chegou às centrífugas da Coréia do Norte é tão implausível que, se constasse de um romance, ninguém acreditaria nele.