Título: O pífio pacote do Tio Patinhas
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Fonte: O Estado de São Paulo, 07/03/2007, Notas e Informações, p. A3

O coronel Hugo Chávez deve estar rindo a bandeiras despregadas e pensando com os seus botões: ¿Eu não merecia tanto.¿ Mister Bush, como ele costuma chamar o presidente americano, quando não o compara ao demônio, fez-lhe o favor de tentar imitá-lo no populismo. Conseguiu ser ainda mais primário do que ele, ao anunciar em Washington um plano assistencialista para a América Latina, às vésperas de seu giro de uma semana por cinco países da área, a começar do Brasil, onde chega amanhã. O pacote do Tio Patinhas, como é o caso de chamá-lo, fará os Estados Unidos gastarem na América Latina US$ 1,6 bilhão por ano - o equivalente ao custeio de 5 dias da guerra no Iraque e uma gota d'água perto do oceano de petrodólares por onde o chavismo navega a todo vapor, da Argentina à Nicarágua.

O pífio projeto de Bush é um acinte. Nem tanto pela avareza, pela insignificância, quanto pelo anacronismo e, principalmente, pela retórica do discurso com que foi anunciado. A esta altura, enviar um navio-hospital para doentes de baixa renda, treinar professores e bancar cursos de inglês para a ¿juventude latino-americana¿, entre outras benesses para fomentar a democracia e isolar o caudilho de Caracas, é voltar aos tempos anteriores aos da Aliança para o Progresso. John Kennedy a lançou em 1961 na expectativa de mudar na região as condições objetivas favoráveis à propagação do castrismo. Prensado pela roda da História, o programa era sério, combinava ambição, ousadia e conhecimento de causa das mazelas do Hemisfério. Falava em reforma agrária, fim do analfabetismo e modernização econômica. Passados 46 anos, a América Latina quer da potência do Norte financiamentos e investimentos produtivos - e mais comércio verdadeiramente livre.

Mas a pior ofensa perpetrada pela indigência política do bushismo foi a própria alocução do mais deplorável presidente dos EUA até onde a memória alcança. Como quem descobre a América (Latina), ele se mostrou compassivo diante dos padecimentos da imensa maioria das populações South of Rio Grande. ¿Um em cada quatro latino-americanos vive com menos de US$ 2 por dia. Muitas crianças jamais terminam a escola primária. Muitas mães nunca vêem um médico¿, atestou, para arrematar, transpirando indignação: ¿Isso é um escândalo.¿ Foi além, no entanto. Traçando a mais perfeita caricatura concebível do gringo fraterno e politicamente correto, dirigiu-se aos ¿trabajadores y campesinos¿ da região - obreros não, porque assim fala a esquerda - para fazê-los saber que ¿têm um amigo nos Estados Unidos¿ e que ¿nós nos preocupamos com vocês¿.

Pelo menos o desenho animado de Walt Disney Alô, amigos, de 1943, com a criação do personagem Zé Carioca, era mais divertido e ajudava a promover uma causa nobre - a política de boa vizinhança dos Estados Unidos em guerra contra o nazi-fascismo, que trouxe o presidente Franklin Roosevelt ao Brasil também naquele ano. Seria cansativo transcrever todas as passagens da fala de Bush que justificam o lugar-comum de que ele perdeu uma excelente oportunidade de ficar calado. De fato, entre o silêncio antes da viagem e o que ele afirmou, a primeira alternativa teria sido incomparavelmente menos afrontosa. Mas não se pode passar ao largo da seguinte enormidade: ¿Os Estados Unidos estão ajudando (os países latino-americanos) a construir economias que sejam abertas para o mundo.¿ Que o digam as suas tarifas alfandegárias e os seus subsídios ao agribusiness americano.

Por vias transversas, Bush pelo menos deu razão a todos quantos vêem com ceticismo o alarido em torno do que tem sido apresentado como a razão de ser de sua passagem por São Paulo: o marco inaugural de uma parceria econômica, tecnológica e estratégica na área de biocombustíveis, sem precedentes no relacionamento entre o Brasil e os EUA. Nem tanto porque ele não pronunciou a palavra etanol no seu discurso - decerto para não melindrar os outros países que visitará -, mas porque, à sua patética maneira, deixou claro que o motivo da sua vinda se chama Hugo Rafael Chávez Frías. Por isso mesmo, todo espanto é pouco diante da exibição do quanto o bushismo está por fora dos problemas latino-americanos, as percepções que deles têm as suas sociedades e as aspirações de seus governos em relação à política hemisférica de Washington.