Título: A revolução da promoção por mérito
Autor: Mesquita, Fernão Lara
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/03/2007, Espaço Aberto, p. A2

O governador José Serra anuncia que os servidores públicos paulistas passarão a ter o desempenho como principal fator de reajuste dos salários. Tem grande significado simbólico, também, o fato de o novo sistema começar a ser aplicado pela categoria dos professores.

Nosso sistema público de educação tem desempenho pífio. E não há, na História, exemplo de país que tenha dado um salto econômico e reduzido desigualdades sociais antes de fazer uma revolução no seu sistema de educação.

O pressuposto para consegui-la é que o povo consiga domesticar seus políticos. É lugar-comum ouvir-se que a sucinta engenhosidade da Constituição norte-americana é que é a responsável pela prosperidade daquele país. Mas isto é apenas meia verdade. Pouco menos de cem anos após sua promulgação, ela tinha produzido um país tão impotente e desesperançado diante da enorme corrupção, da impunidade e da violência reinantes quanto o Brasil de hoje.

A essência da revolução americana foi desqualificar toda riqueza e todo poder que não decorressem do mérito num mundo onde riqueza ou pobreza - assim como tudo o mais - eram transmitidas por herança, e esforço e empenho pessoal eram inúteis para alterar a condição à qual o indivíduo estava condenado desde o nascimento. Mas houve uma falha, uma semente maligna que quase pôs tudo a perder, acidentalmente plantada, ironicamente, por um dos fundadores da democracia americana, Thomas Jefferson.

Os fundadores da democracia norte-americana estavam divididos em dois partidos: os Federalistas, que defendiam a entrega de uma parcela maior dos poderes das cidades e dos Estados à União, e os Antifederalistas, que defendiam o contrário. Os Federalistas venceram as duas primeiras eleições e os presidentes que formaram a primeira base da administração pública nacional buscaram, naturalmente, quadros do seu partido para tanto. Quando Thomas Jefferson foi eleito terceiro presidente da República, usou critérios exclusivamente políticos para desocupar a maior parte desses cargos e preenchê-los com gente do seu partido. E isso criou um precedente nefasto, que rapidamente se generalizou, tornando-se a regra em todas as instâncias políticas da nação.

Não demorou muito para que aquilo que ficou conhecido como o ¿spoils system¿ (sistema podre) de nomeação e promoção política de funcionários corrompesse totalmente a jovem República americana, onde todas as instâncias políticas eleitas passaram a ¿aparelhar¿ o Estado, pondo os servidores a serviço da perpetuação de seu poder político.

O resultado foi algo que conhecemos bem: a administração pública passou a ser um sistema de seleção negativa, inteiramente desligado dos interesses do povo e cada vez mais servil aos cafajestes que, retribuindo-lhes com privilégios e garantindo-lhes impunidade nos processos por corrupção do Legislativo (em tudo semelhantes às nossas atuais CPIs), tomaram conta da máquina pública e do sistema político, expulsaram dele as pessoas de bem e passaram a saquear a nação para sustentar seus projetos de perpetuação no poder.

Na virada do século 19 para o 20, numa luta que se prolongou por mais de 30 anos - o movimento que ficou conhecido na História americana como a ¿Progressive Era¿, iniciado e liderado pela imprensa -, o desvio foi sendo lentamente revertido. E o passo fundamental para isso foi acabar com o poder de delegar poder não legitimado pelo povo que os políticos eleitos se auto-atribuíram, e que nega todo o sentido da democracia e da revolução americana. Depois de tomar as ruas, essa luta contra a reedição deste que foi o grande instrumento de sustentação do absolutismo monárquico acabou sendo abraçada por dois presidentes, Theodore Roosevelt, criador e primeiro gestor da Agência Federal para o Serviço Público, e Woodrow Wilson, e consistiu, essencialmente, na criação de normas rígidas e transparentes para o ingresso e a progressão das carreiras do serviço público da pequena parcela dos funcionários que tinham, pela natureza de seus cargos, de ser trocados junto com cada governo, e na providência de tornar diretamente elegível pelo povo a grande maioria dos demais, que, pelo instrumento do ¿recall¿, podem ser cassados a qualquer momento.

Hoje, nenhum funcionário norte-americano é incondicionalmente ¿estável¿, nem mesmo os juízes da Suprema Corte, e nem precisa ¿puxar o saco¿ de um chefe para subir na carreira. Cada funcionário tem funções perfeitamente definidas que pode e deve cumprir, à revelia da hierarquia política, da qual é totalmente independente, e seu desempenho deve ser medido periodicamente. As cidades têm direito a fazer eleições não-partidárias e a maioria delas, hoje, elege CEOs e gestores profissionais, demissíveis ad nutum, em vez de prefeitos. Somente as secretarias políticas têm funcionários - eleitos ou não. Todas as envolvidas em obras, saneamento, transportes e outras atividades práticas foram substituídas por empresas privadas contratadas para prestar serviços, que também podem ser descontratadas a qualquer momento.

O ¿sistema podre¿ de nomeação de funcionários públicos sempre foi a regra no Brasil, e está na raiz de toda a nossa desgraça institucional e política. Somos hoje um país de castas com privilégios que ninguém mais desfruta neste mundo.

Enquanto os funcionários do Estado continuarem estáveis e seguirem sendo promovidos independentemente de desempenho, a sociedade brasileira continuará instável e trabalhando dobrado para ganhar a metade do que vale o seu esforço, roubado pelos escolhidos dos ¿chefões¿ e coronéis, que sobem tanto mais na vida quanto mais cúmplices forem das suas mentiras e falcatruas.