Título: Um projeto autoritário
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/03/2007, Notas e Informações, p. A3

O governo conseguiu ir além das previsões pessimistas, mandando ao Congresso Nacional um projeto de lei que amplia os poderes já excessivos da Receita Federal. Os brasileiros poderão assistir a um festival de arbitrariedades, se o projeto for convertido em lei, pois o Fisco terá a prerrogativa de atropelar contratos e de multar e cobrar impostos segundo o critério de seus fiscais e delegados. A aprovação porá ¿uma bomba atômica nas mãos dos fiscais da Receita, capaz de destruir qualquer negociação¿, disse o presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SP, Antônio Carlos Rodrigues do Amaral.

O envio desse projeto é um desdobramento da polêmica em torno da situação dos prestadores de serviços constituídos como pessoas jurídicas. Senadores e deputados incluíram no projeto da Super-Receita, aprovado recentemente, um dispositivo que proibia os auditores fiscais de multar e até desconstituir as empresas, se julgassem que o contrato de prestação de serviços apenas disfarçava uma relação de emprego. Por aquela emenda - de número 3 -, só a Justiça do Trabalho poderia interferir no contrato e nas operações do profissional constituído como pessoa jurídica.

Pressionado pelos ministros do Trabalho e da Fazenda e por dirigentes sindicais, o presidente da República vetou a Emenda 3. Como compensação, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, prometeu mandar ao Congresso um projeto de lei sobre o assunto. Pelo que foi anunciado, o fiscal, em caso de suspeita, deveria remeter o assunto ao delegado regional da Receita, que decidiria o assunto. A solução foi considerada ruim pelos defensores da Emenda 3. A única mudança, segundo argumentaram, consistia na transferência da decisão para o delegado regional. De toda forma, um agente da Receita manteria a prerrogativa de interferir num contrato firmado livremente entre duas empresas.

O projeto afinal enviado ao Congresso na quinta-feira é pior do que aquele anunciado, dias antes, pelo ministro da Fazenda. Atribui ao Fisco o poder de intervir não só nos contratos de pequenas empresas prestadoras de serviços, mas também nas atividades de empresas de todos os tipos, sob o pretexto de evitar elisão fiscal.

Ao produzir esse texto, o Ministério da Fazenda tentou regulamentar um polêmico artigo introduzido no Código Tributário pela Lei Complementar nº 104, de 2001. A primeira tentativa de regulamentação ocorreu em 2002, por meio da Medida Provisória (MP) nº 66. O Congresso derrubou os artigos que foram considerados mais lesivos aos direitos dos contribuintes e o assunto permaneceu aberto.

Pelo novo projeto, a autoridade administrativa poderá desconsiderar, para fins tributários, ¿os atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência de fato gerador de tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária¿. O auditor fiscal notificará o contribuinte e este disporá de 30 dias para apresentar sua defesa. Se for considerada insatisfatória, o agente fiscal encaminhará representação à autoridade administrativa. Esta julgará os fatos apresentados pelos dois lados e tomará a decisão. Esse funcionário não só agirá como juiz, mas ainda terá a faculdade especialíssima de proceder como parte interessada e instância julgadora.

O projeto é uma cópia parcial e malfeita de artigos da MP 66, disse o ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel, autor daquela malsucedida tentativa de regulamentar os procedimentos de combate ao chamado planejamento tributário.

Os congressistas interessados em defender os direitos dos contribuintes e a liberdade de contrato têm agora diante de si duas tarefas. Uma delas é derrubar o veto presidencial à Emenda 3. Poderão fazê-lo sem dificuldade, por maioria absoluta, em votação secreta, a menos que uma parte dos que apoiaram a emenda agora resolva ceder ao governo. A segunda é rejeitar o novo projeto de lei, que atribui à Receita poderes incompatíveis com a ordem institucional.

Se assim procederem, defenderão não somente liberdades públicas e interesses privados de profissionais e empresas. Acima de tudo, combaterão a arbitrariedade e reafirmarão algumas das condições indispensáveis ao bom funcionamento de um regime democrático.