Título: Europa precisa reinventar o sonho
Autor: Lapouge, Gilles
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/03/2007, Internacional, p. A21

A Europa completa 50 anos. Ela nasceu em 25 de março de 1957, em Roma, no Capitólio, e as ruas acompanharam, as ruas de Bruxelas, Amsterdã, Bonn, fizeram a festa. Meio século mais tarde, é em Berlim que se comemora essa ¿virada da História¿. Multidões inundam a Avenida Unter den Linden. Mais uma vez é ¿desembainhada¿ a Quinta Sinfonia do querido velho Beethoven, e seu Hino à Alegria.

Tanto melhor que se esteja alegre. Mas muitos descobrirão, por baixo da alegria, outras paisagens - planícies mornas, cores menos cintilantes, tons cinza. E estes estarão certos: a Europa está em crise, a mais profunda desde o nascimento.

Evidentemente, pode-se negar essa crise e dizer que tudo vai bem desde que haja fogo sob as cinzas. Entendo, porém, que é mais sábio reconhecer a gravidade do momento.

Uma vez reconhecida a crise, uma vez realizado esse ato de verdade e coragem, é preciso recomeçar prontamente o combate, e atacá-la. Uma doença não é a morte. Os entraves de hoje não significam que a Europa está se acabando. Absolutamente. Ela não está chegando ao fim. Ela pede um recomeço. Melhor: desvendar a realidade e os contornos dessa crise pode construir a base, a fundação sobre a qual será possível edificar uma Europa nova, fresca, sedutora, uma Europa não ¿cinzenta¿, não tediosa como um domingo de chuva, mas brilhante e cheia de cores.

Primeira tarefa: desvendar as raízes da crise. Ora, sua primeira razão é, paradoxalmente, o sucesso do Tratado de Roma de 1957. Graças a esse ato, o continente é hoje mais seguro, mais rico, mais calmo, mais enérgico, mais equilibrado do que era há meio século. E, sobretudo, é mais livre. As fronteiras foram rebaixadas ou abolidas. O comércio explodiu. O intercâmbio comercial e humano se multiplicou enormemente.

Uma anomalia deve ser assinalada, porém: se a União Européia é, aos olhos dos que a integram, morna, desanimadora e tediosa, em compensação ela fascina os países que não tiveram acesso a ela. Para estes, ela é uma ¿terra prometida¿. Todo o mundo toca a campainha dessa Canaã, da Turquia à Ucrânia.

Em 1957, apenas seis países assinaram o Tratado de Roma - Alemanha, Bélgica, França, Holanda, Itália e Luxemburgo. Hoje são 27, da Letônia (grande Norte), à Grécia (grande Sul). Esse é o triunfo do Tratado de Roma; é também sua fragilidade, a sua fraqueza.

É a sua fragilidade porque o instrumento, o aparelho que pilota o comboio europeu, foi concebido para os seis países fundadores, países semelhantes, muito desenvolvidos, com a mesma história, forjados através de mil anos de lutas. E, naturalmente, esse mesmo instrumento que funcionava muito bem para seis países próximos e parecidos, se revela incapaz de controlar esse ¿monstro¿ de 27 países muito diferentes.

Há uma outra razão para a crise: o tempo. O mundo de 2007 não tem nenhuma relação com o de 1957. O fim da URSS, o nascimento de um mundo unipolar com o triunfo de uma América hegemônica que pretende patrocinar e garantir ¿o fim da História¿, o avanço de novas potências (a China, claro, mas também a Índia e o Brasil), tudo isso metamorfoseou a face da Europa, tornando obsoleto o Tratado de Roma. Uma outra novidade, esta trágica, se somou: a ascensão do terrorismo islâmico, assassino, ameaçador, que obriga a multiplicação dos controles, os fechamentos de fronteiras, exatamente o contrário do que pregava a filosofia de abertura do tratado.

Além disso, há uma questão de gerações. O Tratado de Roma, em 1957, foi assinado por pessoas que saíam das infâmias da guerra. Essa foi a principal motivação dos ¿pais fundadores¿ (o alemão Konrad Adenauer, o francês Robert Schuman, o italiano Alcide de Gasperi), todos ainda traumatizados pelo genocídio e os assassinatos em massa. Sua primeira preocupação era consolidar para a eternidade a calma precária que reinava sobre a Europa depois de 1945. ¿Isso nunca mais!¿ Para os cidadãos, também eles marcados pelo calvário da guerra, o Tratado de Roma foi, no início, um instrumento para conjurar a loucura que martirizava o continente havia 1.500 anos. O tratado respondia a um anseio de todos os europeus: a paz, enfim a paz! Ora, de 1957 para cá, esse fantasma da guerra se eclipsou. Os adultos de 2007 eram recém-nascidos ou nem eram nascidos em 1957. A memória dos anos atrozes se evaporou. Hoje, ninguém pode razoavelmente imaginar que a Alemanha e a França vão recomeçar a sangrarem-se mutuamente. Melhor: Paris e Berlim são os melhores amigos do mundo.

Assim, o temor de novas guerras se desfaz. Em seu lugar, a vertente econômica e financeira se proliferou até invadir todas as instâncias de Bruxelas. Mas essa economia será suficiente para eletrizar os povos e suas energias? O cineasta alemão Wim Wenders lamenta que a Europa de 2007 não passe de um instrumento de gestão econômica. Ele diz: ¿A 100 metros de minha casa, como em todas as grandes capitais européias, existe um `showroom¿ da UE. O que vemos ali? Mapas. Folhetos. Estatísticas. Que tédio! Quem ama seu país pela sua economia? Ninguém.¿

Em 1957, a Europa era um ¿desejo¿. Hoje, ela não passa de uma ¿necessidade¿. Este não seria um bom programa para os próximos 50 anos? Que a UE reinventasse o lirismo de sua infância, que tornasse a ser o que foi e esqueceu no caminho: uma epopéia.

Infelizmente, se os ¿gnomos¿ da Comissão Européia de Bruxelas, do Banco Central Europeu em Frankfurt, são seguramente os ¿superdotados¿ das finanças, do crescimento e dos fluxos de comércio, eles não são os ¿superdotados¿ do sonho. Ora, é isso que a Europa perdeu no caminho nos últimos 50 anos. A grande missão dos homens nos próximos 50 anos, de 2007 a 2057, deveria ser a seguinte: reinventar o ¿desejo da Europa¿.