Título: Silêncio de Natascha amplia mistério
Autor: Dorlhiac, Gabriella
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/03/2007, Internacional, p. A22

Natascha Kampusch, a jovem austríaca que viveu oito anos mantida prisioneira pelo eletricista Wolfgang Priklopil no porão de uma casa na cidade de Strasshof, a 25 quilômetros de Viena, comemorou ontem oito meses de liberdade. A reviravolta em sua vida desde que escapou do cativeiro pode ser notada não só pelo seu aspecto físico - ela engordou nove quilos, como mostram as fotos exclusivas de sua festa de aniversário, no mês passado, obtidas pelo Estado - como pelo tamanho de sua conta bancária. Ninguém sabe quanto ela faturou nas raríssimas entrevistas exclusivas que concedeu, mas as estimativas mais exageradas falam em até 4 milhões de euros.

Natascha conseguiu a proeza de virar celebridade sem revelar o que mais o público quer saber - os detalhes sórdidos de sua convivência forçada com Priklopil, que suicidou-se no mesmo dia em que Natascha fugiu, e da suposta participação de seus pais no seqüestro. Ela não quis voltar a morar com a família (os pais são separados), preferindo alugar um apartamento. Natascha chegou a cogitar a possibilidade de comprar a casa que lhe serviu de cativeiro para evitar que o local virasse um museu de seu sofrimento.

Nas entrevistas à imprensa, ela evita entrar em detalhes sobre abusos sofridos de seu raptor (embora admita que existiram), repetindo o que disse nos depoimentos, todos superficiais, que prestou à polícia logo após fugir: ¿Não quero falar sobre isso.¿

Por pressão da família e sugestão dos psicólogos e psiquiatras que a acompanham desde que conseguiu a liberdade, as autoridades concordaram em dar tempo antes de interrogá-la detalhadamente. E quanto mais o tempo passa, mais versões mirabolantes surgem sobre os dois lados desta história - o que de fato levou o eletricista a seqüestrar uma menina de 10 anos e a mantê-la como refém, e como ela encarou essa experiência.

ANIVERSÁRIO

Fotos tiradas em 17 fevereiro, durante sua festa de aniversário de 19 anos - o primeiro que a jovem comemorou após ter escapado do cativeiro -, mostram uma Natascha tranqüila e sorridente ao lado dos pais.

Aparentemente banais, as imagens acabaram se transformando numa peça-chave da intricada trama envolvendo o seqüestro. A reviravolta ocorreu há uma semana, quando um tribunal de Viena abriu um inquérito para apurar o possível envolvimento de Brigitte Sirgny, mãe de Natascha, no seqüestro da própria filha. A decisão foi baseada numa antiga denúncia de Martin Wabl, um ex-juiz obcecado pelo caso desde o desaparecimento da jovem, em 1998. Wabl sustenta que Brigitte ajudou Priklopil no seqüestro da filha para acobertar seu envolvimento em atividades sadomasoquistas - nas quais Natascha teria sido forçada pela mãe a participar.

A suspeita não chega a ser novidade. Logo após o sumiço de Natascha, a polícia encontrou em sua casa um álbum de fotografias da menina em poses sensuais. Na mais picante, Natascha aparecia praticamente nua numa cama, usando apenas uma estola de pele. Como ter fotos da filha em casa não configura crime, a denúncia foi deixada de lado. O ex-juiz acabou sendo processado por Brigitte e, em 2001, por uma decisão da Justiça, ele foi proibido de fazer novas acusações.

Wabl obteve agora a reabertura do inquérito já que na época não pôde apresentar a testemunha mais importante: a própria Natascha. ¿Está claro que o senhor Wabl só conseguiu reabrir o caso porque conhece a fundo a legislação austríaca e encontrou um detalhe técnico para basear seu pedido¿, disse ao Estado, por telefone, Stefan Bachleitner, assessor de imprensa de Natascha. ¿A própria Natascha já afirmou que está 100% convencida de que seus pais não têm nenhum envolvimento no seqüestro¿, acrescentou Bachleitner.

A reabertura do inquérito pode obrigar Natascha a romper o silêncio que vem mantendo, caso seja obrigada a depor no tribunal. Essa possibilidade, porém, vai depender de autorização da equipe médica que está acompanhando sua nova rotina.

Os austríacos ficaram chocados com as declarações de Natascha de que mantinha ¿contatos sexuais¿ com Priklopil. ¿Wolfi não era um maníaco sexual, nem eu. Tínhamos uma relação afetuosa. Mas eu sempre soube que ele tinha feito uma coisa ruim¿, disse ela.

Especialistas acreditam que Natascha desenvolveu a Síndrome de Estocolmo - que se manifesta quando o refém se identifica ou tem admiração com o seqüestrador. Natascha tinha 10 anos na época em que foi raptada. Ela caminhava para escola no dia 2 de março de 1998, quando foi agarrada pelo eletricista e jogada dentro de um furgão branco.

Os primeiros anos foram duríssimos para a menina. Priklopil, que para os vizinhos e amigos era apenas um eletricista pacato, trancou Natascha num quarto minúsculo no porão da casa, que era vigiado por câmeras. Depois de um período inicial de hostilidade, ele a presenteou com livros e lápis de cor e permitiu que ela assistisse TV e ouvisse rádio. ¿Ele disse que não era justo que eu não acompanhasse algo (as investigações) que me dizia respeito¿, contou depois.

O passo seguinte foi permitir que ela saísse do quarto. Natascha, então, passou a cuidar da casa e a fazer o jantar. Para chantageá-la emocionalmente, o seqüestrador lhe dizia que seus pais se recusavam a pagar o resgate de apenas US$ 1 mil (cerca de R$ 2 mil). ¿Ele me disse que sempre ligava para os meus pais, mas que não atendiam porque eu não era importante para eles.¿ O seqüestrador também lhe mostrava constantemente recortes de jornais com notícias trágicas: ¿Está vendo do que a estou protegendo?¿, dizia.

Confiante de seu poder sobre a menina, Priklopil passou a permitir que ela saísse da casa com ele para ir a museus e até a uma estação de esqui. No dia 24 de agosto do ano passado, Natascha estava no jardim passando o aspirador no carro do seqüestrador, que falava ao celular. Quando ele se afastou por causa do barulho, ela percebeu a sua chance. ¿De repente vi que tinha que fugir naquele instante¿, contou. A jovem correu para a casa de uma vizinha para pedir ajuda. A senhora que atendeu a porta ficou com medo de deixá-la entrar. Logo depois uma viatura da polícia chegou e Natascha pôde identificar-se. Era a menina desaparecida 8 anos antes. Horas mais tarde, Priklopil jogou-se na frente de um trem.

Durante o cativeiro de Natascha, Priklopil alternava momentos de carinho com de extrema crueldade. A jovem contou que chegou a desmaiar de fome algumas vezes. ¿Ele não comia quase nada. Era como se fosse um anoréxico que queria me passar a doença; eu tinha medo de morrer de fome¿, contou depois. De acordo com o jornal The Sunday Mirror,que obteve um depoimento exclusivo de Natascha, o regime de fome do eletricista deixou seqüelas no sistema circulatório da jovem, sem especificar quais. Quando conseguiu fugir, Natascha pesava apenas 42 quilos - praticamente o mesmo peso da época em que foi seqüestrada.

ESTUDO

Como qualquer adolescente, Natascha agora faz planos para o futuro. Cercada por um grupo reduzido de tutores - tendo à frente Gabriel Lansky, sócio de um renomado escritório de advocacia de Viena -, sua primeira decisão foi de voltar a estudar. Para evitar o assédio e a curiosidade do público, Natascha tem aulas particulares equivalentes aos de uma estudante da 6ª série do ensino fundamental.

Ela já anunciou que quer ser atriz e fundar uma fundação para ajudar vítimas de seqüestro. Nos últimos meses, Natascha procurou se distanciar da mídia, que cobriu à exaustão cada novo episódio do caso. Mas vários novos acontecimentos têm feito os austríacos acompanhar a vida de Natascha como se fosse uma novela.

A saída do psiquiatra Max Friedrich da equipe médica que cuidava da jovem causou polêmica, pois teria sido motivada por pressões do pai - que o acusou de usar a filha como meio de se autopromover. Foi Friedrich quem divulgou uma carta de Natascha na qual a jovem revela detalhes chocantes de sua vida de refém.

Também causou furor a suposta existência de um diário que Natascha teria escrito durante os anos de cativeiro, o que nunca foi confirmado por ela. O silêncio de Natascha está provocando uma corrida em Hollywood pela compra dos direitos de sua história, que podem lhe render até US$ 100 milhões - fala-se até que seu papel seria protagonizado pela atriz Scarlett Johansson.

A fortuna que o nome de Natascha envolve é visto até como aparente razão para a aproximação dos pais da jovem. ¿Eles são pobres e sabem que a filha está milionária¿, acusou, por telefone, ao Estado, o jornalista britânico Michael Leidig, co-autor do livro The Girl in The Cellar - The Natascha Kampusch Story (¿A Garota no Porão - A História de Natascha Kampusch¿, em tradução livre) e que cobriu a libertação da jovem desde o começo. ¿A única pessoa que poderá dizer o que realmente aconteceu é a própria Natascha. E agora, pode levar 20 anos até que ela resolva contar tudo¿, acrescentou Leidig.