Título: 'Poder dos EUA está diminuindo'
Autor: Mello, Patrícia Campos
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/03/2007, Internacional, p. A24

Dezoito anos atrás, o bloco soviético começou a desintegrar-se e os Estados Unidos emergiram como a única superpotência mundial. O país era uma potência inconteste - admirada, vista como líder natural e merecedora de seu status. Hoje, os EUA são hostilizados por aliados e inimigos, e sua liderança global é cada vez mais questionada. A posição unilateralista em questões que envolvem desde o aquecimento global até tribunais internacionais, guerras como a do Iraque e violações aos direitos humanos em Abu Ghraib e Guantánamo causaram um dano profundo à reputação mundial dos EUA. Mas a América tem uma segunda chance, afirma Zbigniew Brzezinski, um dos mais respeitados especialistas em política externa dos EUA. 'Assim como no século 20 os EUA vieram simbolizar a luta das democracias contra o totalitarismo, o próximo presidente terá de sintonizar o país com o espírito da nossa era - uma busca por maior igualdade e justiça social - para manter a supremacia americana', diz Brzezinski, que foi conselheiro de Segurança Nacional no governo Jimmy Carter e atua no Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais. Ele acaba de lançar o livro Second Chance: Three Presidents and the Crisis of American Superpower (Segunda chance: três presidentes e a crise da superpotência americana), no qual analisa o desempenho dos três governantes americanos no mundo pós-guerra fria e o desafio de recuperar a legitimidade da liderança dos EUA. Abaixo, trechos da entrevista que concedeu ao Estado em seu escritório.

Os Estados Unidos ainda são a superpotência mundial?

Sem dúvida. Mas o poder dos EUA, por causa de suas próprias políticas, está diminuindo. A América está mais fraca porque prejudicou sua credibilidade, um importante elemento do poder. Até 2003, o mundo estava acostumado a acreditar na palavra do presidente dos EUA - mas dois meses depois da invasão de Bagdá, Bush dizia em entrevista que tinham sido encontradas armas de destruição em massa. Os EUA também perderam parte de sua legitimidade. E diminui também o respeito que havia pelo poder militar americano, por causa da incompetência de sua operação no Iraque.

O sr. afirma que o atual governo é pautado por uma 'paranóia maniqueísta'...

O neoconservadorismo que prosperou no governo Bush, doutrina rival do globalismo, é maniqueísta. Baseia-se em certezas morais do bem contra o mal, 'com a gente ou contra a gente'. Tudo isso está relacionado à chamada guerra contra o terrorismo, que criou uma cultura de medo nos EUA e reduziu a autoconfiança dos americanos.

Em termos de liderança global, o sr. dá nota B a Bush pai, C a Clinton e F a Bush. Quais foram os principais acertos e erros de cada um em política externa?

Bush pai lidou extremamente bem com a desintegração da União Soviética e a fase inicial da campanha para expulsar Saddam Hussein do Kuwait (embora não tenha tirado todo o poder do ditador iraquiano). Mas ele não tinha um conceito mais ambicioso do mundo no momento em que os EUA emergiram como o único poder global. Clinton atuou bem na expansão da Otan, que garantiu estabilidade na Europa; e na crise iugoslava. Mas, em oito anos de governo, não fez nenhum progresso no Oriente Médio - aliás, deixou a situação pior do que era antes. Ele personificou a auto-indulgência como um conduta pessoal e da nação, quando havia a oportunidade de a América se identificar com a nova busca de justiça social e atenção aos pobres. Quanto a Bush, acho que não preciso explicar.... em meu livro, o nome do capítulo sobre seu governo é 'Liderança catastrófica'.

Quais os riscos que os EUA terão de enfrentar até o fim do governo Bush, em 2008?

Existe o risco de a guerra do Iraque se prolongar indefinidamente, escalar e até se espalhar por causa de algum incidente que pode ser usado para justificar uma operação militar no Irã.

Quais seriam as conseqüências de a guerra se espalhar para o Irã?

Se nos envolvermos num conflito com os iranianos, enquanto a guerra do Iraque se desenrola e a situação no Afeganistão se complica, é muito provável os EUA acabem sozinhos, metidos em uma guerra no Iraque, Irã, Paquistão e Afeganistão. E isso teria conseqüências evidentes para a supremacia americana.

A esta altura, ainda é possível negociar com o Irã? O Departamento de Estado tem sinalizado uma mudança de rota, concordou em participar na conferência com o Irã...

Com certeza é possível, por que não? Esses são passos na direção correta e, se continuarmos assim, podemos ter várias negociações com o Irã, relacionadas ao Iraque e à estabilidade do Oriente Médio, sobre uma continuação da colaboração que tivemos, do Irã, no Afeganistão, em 2002. E, por último, poderíamos ter um diálogo sobre o problema nuclear, desde que os EUA recuem nas exigências rígidas demais que impuseram, e se transformaram em um impedimento para qualquer negociação.

O que o sr. esperaria, em termos de política externa, dos principais candidatos às eleições de 2008 - Barack Obama, Hillary Clinton, Rudy Giuliani e John McCain?

Obama iria significar a grande mudança, o símbolo da América que realmente é uma sociedade universal. Já Hillary seria uma continuidade dos anos Clinton, o que não é uma coisa negativa, mas, diante da atual degradação da posição dos EUA no mundo, talvez algo dramaticamente novo seja necessário. Acho que Giuliani e McCain, a esta altura, estão presos no apoio à política externa de Bush, que não pode ser mantida depois de 2008. A questão é: qual dos dois iria mudar de política? Acho que nenhum republicano conseguirá vencer a eleição se fizer campanha com base na continuidade das políticas de Bush.

O que o sr. acha das políticas de Bush para a América Latina?

Bush manteve uma política de indiferença e negligência em relação à América Latina, mas não houve uma hostilidade. O problema é que os EUA ficaram tão absortos em sua própria guerra no Iraque desde 2003, e desde 2001 em sua pretensa guerra contra o terror, que não tiveram tempo para mais nada.

Então, além de se envolverem em uma situação de difícil solução no Oriente Médio, os EUA negligenciaram outras regiões do mundo?

Sim, e as conseqüências mais dramáticas são vistas na América Latina - a ascensão do populismo democrático antiamericano. Até então, os EUA conseguiam promover democracias genuínas na região como forma de consolidar seu relacionamento com os latinos. A alternativa a isso eram os regimes não-democráticos, do tipo castrista ou peronista. O que é novo é a emergência das democracias populistas antiamericanas na Venezuela, Bolívia, que são um desafio ainda maior do que os regimes não-democráticos.

Os EUA estão tentando resgatar o relacionamento com a América Latina, o presidente Bush acaba de fazer uma viagem à região. Ainda dá tempo de se redimir?

Essa viagem foi muito positiva porque mostrou do interesse, mas os problemas são mais profundos. O antagonismo em relação aos EUA vem da imagem de país unilateralista preocupado apenas com seus próprios interesses. A globalização, que é um fenômeno positivo, produz muitas dificuldades no curto prazo, problemas agudos. Se os EUA apostam na globalização como motor de mudanças, deveriam se preocupar mais com os problemas causados pela globalização.

Se os EUA realmente perderem poder, quem poderia emergir como a próxima superpotência mundial?

O fato é que não há alternativa para os EUA - e é por isso que a América tem uma segunda chance, o nome do meu livro. Aqueles que estão sentados em São Paulo ou Caracas, sentindo 'schadenfreude' (prazer com a desgraça alheia) por causa das dificuldades que os EUA estão enfrentando, deveriam pensar duas vezes. Eu sou crítico em relação à política externa americana, mas o mundo não será melhor sem os EUA como estímulo para mudança, sem o país como ponto de equilíbrio, fonte de inovação. Os EUA são o único país verdadeiramente global, domesticamente também - o Brasil é uma sociedade global, mas, domesticamente, ainda é muito provinciano. O fracasso dos americano significaria anarquia global.

Como o sr encara uma possível liderança chinesa?

A China pode estar emergindo como líder em suas relações com a África e talvez no Extremo Oriente. Mas como pode um país que tem 1,3 bilhão de habitantes, dos quais no mínimo 800 milhões vivem em péssimas condições, ser um líder? A China impressiona e tem feito progressos, mas para ser líder é preciso ser bem-sucedido em várias dimensões.

É possível resolver o conflito do Iraque no curto prazo?

Sim, mas não haverá solução enquanto o Bush não se dispuser a mudar suas políticas.

O sr. não vê o presidente Bush finalmente mudando de rumo?

Só se os líderes republicanos disserem a ele, em particular: o sr. está conduzindo o partido a um suicídio nas eleições de 2008. Não vejo isso acontecendo agora, mas talvez mais para frente, à medida em que as eleições se aproximarem e a guerra do Iraque tiver ainda mais impacto, os republicanos dirão a Bush: sua política é insana, esta é uma guerra de orgulho presidencial, não de interesse nacional.

Quem é: Zbigniew Brzezinski

Nasceu em Varsóvia, na Polônia, e tem 79 anos. Tem doutorado em Ciência Política da Universidade Harvard. Foi conselheiro nacional de segurança dos Estados Unidos de 1977 a 1981, durante o governo do presidente Jimmy Carter.