Título: Inflação é bomba-relógio para os governos Chávez e Kirchner
Autor: Costas, Ruth
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/04/2007, Internacional, p. A20

O esforço do governo do presidente José Sarney para 'caçar boi no pasto' em 1986 ficou na memória dos brasileiros como um dos episódios mais esdrúxulos dos malfadados anos em que a inflação foi o centro das preocupações do país. Em helicópteros e camburões, policiais federais saíram Brasil afora laçando gado num momento de desabastecimento nacional. O mais triste da história, porém, é que nem todos os países latino-americanos superaram essa fase. Preocupados com os efeitos da inflação sobre sua popularidade, o presidente venezuelano Hugo Chávez e o argentino Néstor Kirchner resolveram apelar para políticas como confiscos, tabelamentos de preços e - indo além dos governos brasileiros nos anos 80 e 90 - manipulação dos indicadores econômicos.

'Esses métodos seguram a inflação no curto prazo, garantindo o apoio da população, mas com o tempo se tornam parte do problema', disse ao Estado, por telefone, o economista venezuelano Juan Nagel, da Universidade dos Andes, no Chile. Ele explica que a grande ironia é que, para conquistar o eleitorado, Chávez e Kirchner abusam dos gastos públicos - principal motor da inflação -, mas com o tempo a alta de preços tende a castigar principalmente a população mais pobre, base de apoio dos dois governos. 'A inflação é a bomba-relógio que pode desestabilizá-los', afirma Nagel, acrescentando que venezuelanos e argentinos já estão começando a ligar o aumento do custo de vida às políticas populistas dos dois presidentes.

Em 2006, o governo Chávez elevou suas despesas em 50% de olho nas eleições de dezembro. Kirchner, segundo analistas, só parará de gastar em outubro, quando a Argentina for às urnas. Com seus mercados internos recebendo enxurradas de moeda local, Venezuela e Argentina tiveram em 2006 inflações de 17% e 9,8%, respectivamente (contra 3,1% do Brasil). Não é muito se comparado às altas de preços das décadas de 80 e 90 (quem não se lembra de quando nós, brasileiros, ultrapassamos a amarga barreira dos quatro dígitos?), mas hoje esses são os maiores índices da América Latina. Segundo economistas, também é preciso considerar que a situação pode estar pior do que sugerem as estatísticas oficiais porque os dois governos mascaram a inflação.

Na Argentina, a denúncia de tal prática ganhou força com a destituição, no início do ano, de diretores do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec) que se recusaram a aceitar uma mudança na metodologia de cálculo da inflação. 'O governo trapaceou', sustenta o ex-presidente do Banco Central do país, Javier González Fraga, para quem a inflação de 2006 foi de 15%. O sindicato do setor de energia e eletricidade, depois de fazer as contas, também concluiu que seria necessário aumentar em ao menos 20% os salários para compensar as perdas causadas pela alta de preços no ano passado.

'Quando a proposta é 'ajustar números', Chávez não fica atrás dos argentinos', diz Roberto Bottome, editor do diário econômico Veneconomia. Há um mês, o presidente venezuelano anunciou a criação de um novo índice de preços, abrangendo mais regiões e cidades. 'Ele acha que no interior a inflação sobe menos e quer usar o indicador para convencer a população de que a situação não é tão grave', acrescenta Bottome.

As estratégias dos dois presidentes para combater o problema inflacionário também têm semelhanças. 'O que vemos é a rejeição do receituário adotado em países como o Chile e Brasil - onde há pressão por austeridade fiscal e monetária - e a adoção de políticas que já fracassaram em outras décadas', disse ao Estado, por telefone, o cientista político venezuelano Omar Noria, da Universidade Simon Bolívar, em Caracas.

Como Sarney no Plano Cruzado, Chávez pretende cortar três zeros da moeda venezuelana - o bolívar. Na sexta-feira, ele anunciou que criará uma moeda paralela (ou 'comunitária'), para que 'os pobres possam adquirir produtos' sem ter dinheiro oficial. O projeto lembra o patacón, moeda emitida pela Província de Buenos Aires para pagar suas contas depois da crise de 2001 na Argentina.

ESTATIZAÇÃO

Há quatro anos, Chávez também adotou o tabelamento de preços, que inibe os investimentos dos produtores venezuelanos, já pouco entusiasmados pelas ameaças de estatização de empresas e propriedades rurais. Some-se a isso tudo a dificuldade para importar (porque o governo controla com rigidez a venda de dólares) e o resultado é uma grave crise de abastecimento.

'Carne e açúcar sumiram das prateleiras e às vezes é preciso ir a três mercados para achar tomate', diz Noria. Até o Mercal, a rede estatal que vende alimentos a preços subsidiados, sofre com o abastecimento precário, e os venezuelanos têm de tomar leite em pó, porque a produção leiteira do país supre só um terço da demanda.

Enquanto a escassez impulsiona os preços, Chávez se dedica a uma pouco saudável queda de braço com o empresariado, a quem acusa de estocar alimentos com fins especulativos. Em fevereiro, o presidente aprovou uma lei que permite ao governo expropriar empresas e confiscar produtos de quem 'colocar em r isco a segurança alimentar na Venezuela'.'O governo pode tomar e vender os produtos que julgar necessários', diz Borrome. 'Não é literalmente caçar boi no pasto, mas o princípio é o mesmo.'

Kirchner também culpa o setor privado. Além de ter tornado crime o 'estoque especulativo', ele co stuma convocar boicotes contra empresas que 'não colaboram no combate à inflação'. Já entraram na lista negra a distribuidora de combustíveis Shell e os pecuaristas e frigoríficos - pegos de surpresa em 2005 com a proibição das exportações de carne, cujo objetivo era redirecionar o produto para o mercado interno.

Para completar, o secretário de Comércio Interior, Guillermo Moreno, ameaça cancelar as concessões de companhias que não obedecerem ao congelamento de preços. Até a Petrobrás foi vítima das suas advertências há duas semanas, depois que o presidente da estatal, Sérgio Gabrielli, criticou o sistema de controle da inflação na Argentina. Economistas apontam para os sinais de um colapso iminente dessas estratégias e uma conseqüente disparada de preços. A carne registrou alta de 20% nos últimos 15 dias e recentemente houve falta de trigo.

'É triste notar que a inflação está se tornando novamente um dos principais problemas da Argentina', diz o economista Marcelo Resico, da Universidade Católica Argentina. A observação é válida para a Venezuela, apesar de lá o aumento do custo de vida ser compensado, no momento, pela riqueza do petróleo. 'O fato de não estarmos no caminho certo no controle da inflação aumentará os estragos do problema no futuro', opina Alejandro Grisanti, da consultoria Ecoanalítica, em Caracas.