Título: As raposas vigiam o galinheiro
Autor: Marcus, Ruth
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/04/2007, Internacional, p. A20
A casa de palha da administração do presidente George W. Bush parece estar se desfazendo sob os sopros alternados de escândalo e de incompetência.
O tornado de manchetes desastrosas - um Pentágono que não consegue cuidar de maneira adequada de seus feridos, um Departamento de Justiça no qual não se pode confiar que cumprirá a lei ou dirá a verdade ao Congresso, um alto assessor da Casa Branca que mentiu para um Grande Júri - tem sido tão acabrunhante que os abusos do dia-a-dia da administração Bush tendem a passar despercebidos.
Por isso vale a pena fazer uma pausa e prestar atenção em alguns acontecimentos recentes que evidenciam os erros dessa administração e jogam luz sobre uma das principais causas de seu fracasso: uma atitude desdenhosa com o próprio governo. Esses fatos ilustram o plano ¿raposa-cuidando-do-galinheiro¿, típico dessa administração. Mostram o descaso de seus funcionários pelas leis que juraram aplicar e evidenciam sua atitude de tratar como despojos de guerra o governo que se comprometeram a fiscalizar:
O escolhido pelo presidente para supervisionar o programa federal de planejamento familiar, Eric Keroack, renunciou depois que funcionários do Medicaid, em Massachusetts, onde ele tinha uma clínica médica particular, desconfiaram de suas contas. Keroack não era o nome certo para um cargo em que era responsável por fiscalizar a distribuição de anticoncepcionais a mulheres de baixa renda uma vez que dirigia um grupo que considera a contracepção ¿degradante para as mulheres¿.
O presidente Bush indicou Michael Baroody, um alto funcionário da Associação Nacional de Fabricantes, para chefiar a Comissão de Segurança de Produtos de Consumo (CPSC, em inglês) - a agência encarregada de proteger os consumidores justamente dos fabricantes.
Talvez Baroody pudesse ser um ótimo diretor da CPSC, mas ele passou a maior parte das duas últimas décadas cuidando dos interesses dos fabricantes, e não dos consumidores. Recentemente, a associação de fabricantes pressionou a CPSC para relaxar suas normas sobre produtos defeituosos - coisa que a comissão fez.
O superintendente do Departamento do Interior revelou que Julie MacDonald - funcionária que supervisiona o Serviço de Fauna e Pesca dos Estados Unidos que não tem nem sequer formação em biologia - desconsiderou todas as recomendações feitas por cientistas para proteger espécies ameaçadas.
MacDonald também repassou documentos internos a funcionários e grupos do setor que fazem lobby para enfraquecer o sistema de proteção ambiental. Isso sem mencionar o fato de ela ter passado pela internet relatórios oficiais para um garoto, parceiro dela em jogos online.
Um advogado do Departamento do Interior classificou o desempenho de MacDonald como ¿o caso mais imprudente de promiscuidade política¿ que ele vira em mais de 20 anos de serviço público. Ao que parece, a politização não fica restrita a MacDonald.
¿A politicagem está vencendo a ciência em muitas ocasiões¿, foi o que disse outro advogado do departamento para o superintendente do órgão.
J. Steven Griles, um lobista do setor de carvão que se tornou o segundo funcionário mais importante no Departamento do Interior, admitiu que mentiu ao Congresso sobre sua relação com o lobista e delinqüente Jack Abramoff. Uma antiga namorada de Griles o apresentou a Abramoff. Assim, ele começou a comandar um grupo lobista que recebeu US$ 500 mil em fundos cedidos por Abramoff. Em troca, Griles ajudava seu maior financiador com seus clientes.
Outra namorada de Griles, Sue Ellen Wooldridge, que o ajudou responder acusações de caráter ético quando ambos trabalhavam no Departamento do Interior, renunciou à chefia da seção de meio ambiente do Departamento de Justiça. Wooldridge e Griles compraram uma casa de praia de US$ 1 milhão do principal lobista da companhia de petróleo ConocoPhilips. Então, Wooldridge, com a bênção de funcionários do departamento, aprovou uma medida para abrandar exigências ambientais impostas à ConocoPhilips como parte de um acordo.
Lurita Doan, uma megadoadora do Partido Republicano que se tornou chefe da Administração de Serviços Gerais (GSA, em inglês), compareceu a um almoço no qual Scott Jennings, um alto assessor de Karl Rove, informou a alguns correligionários sobre as metas dos republicanos para a eleição de 2008.
Segundo seis pessoas presentes, Doan perguntou a empregados da GSA como eles poderiam ajudar ¿nossos candidatos¿ nas próximas eleições. Doan, revelando uma memória digna de Aberto Gonzales, disse ao Comitê de Reforma Governamental da Câmara dos Representantes, há duas semanas, que não se lembrava de nada.
Contudo, é errado generalizar demais: a maioria dos funcionários da administração é decente, honesta e trabalhadora. A administração Clinton, como outras antes dela, também teve sua cota de velhacos e mercenários. Mas tem alguma coisa nessa atitude leal a Bush, muito presente na atual administração, e nesse seu desprezo fundamental pelo governo, que contribuem para uma conduta arrogante.
Se você tem mais fé nas operações do setor privado do que na capacidade do governo, se você tem pouco compromisso com as leis que se compromete a aplicar, ou se você vê o governo menos como uma coisa a ser administrada e mais como uma força a ser usada em benefício de aliados políticos, então esse tipo de comportamento é o resultado inevitável.
Em suma, se você se identifica tanto com as raposas, não é de se espantar que você acabe num galinheiro tão completamente destruído.