Título: 'Governos não querem que divulguemos a informação'
Autor: Girardi, Giovana
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/04/2007, Vida&, p. A22
O presidente do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), Rajendra Pachauri, talvez tivesse a intenção de manter em sigilo as pressões que a comunidade científica reunida na semana passada havia recebido de delegações governamentais. A resistência, entretanto, perdurou apenas até a primeira pergunta sobre o assunto: ¿Foi um exercício complexo, um documento difícil de se definir.¿ A partir de então, cientistas se dividiram entre louvar o esforço de negociação e críticas à interferência excessiva de Estados Unidos, Rússia, China e Arábia Saudita. No primeiro grupo se alinhou o físico argentino Osvaldo Canziani, doutor em Meteorologia pela Universidade de Londres, uma das maiores autoridades mundiais em mudanças climáticas e co-coordenador do grupo de trabalho do IPCC. Canziani, no entanto, tem uma postura que o distingue: ele não se nega a comentar as pressões, que considera legítimas. ¿Nós, cientistas e políticos, devemos discutir para encontrar o consenso.¿
Em fevereiro, cientistas comemoraram a mínima ingerência das delegações no primeiro relatório do IPCC. Em Bruxelas, ao contrário, a interferência foi ostensiva. Por que, na sua opinião, os governos mudaram de postura?
Os problemas eram distintos. Em fevereiro, investigamos a física das mudanças climáticas. Em Bruxelas, estudamos aspectos sociais e econômicos do aquecimento global. Era um tema de acento muito mais político. Tomemos como exemplo os países produtores de petróleo. Se afirmarmos que as emissões de CO2 na atmosfera são decorrentes da queima de combustíveis fósseis, essa constatação contraria interesses. Os governos não querem que divulguemos a informação, porque as implicações de sua atividade industrial ou comercial serão prejudicadas.
Como se deu o confronto de posições entre governos e cientistas?
Nós, cientistas, não fizemos considerações políticas. Os delegados governamentais o fizeram. Mas é bom ressaltar que nos países desenvolvidos os grupos científicos operam normalmente, com independência. Nós, cientistas e políticos, devemos discutir para encontrar o consenso.
Quais delegações mais pressionaram pela redução da ênfase do relatório final?
As que mais pressionaram foram as delegações norte-americana, inglesa, chinesa e árabe, esta última porque vende petróleo. Todos tinham seus interesses - e é óbvio que exerçam seus lobbies. Os Estados Unidos, com o governo atual, não quiseram sancionar o Protocolo de Kyoto. Agora, precisam organizar uma política própria de redução dos efeitos do aquecimento global. Para tanto, precisam definir um conceito de aquecimento global.
A delegação do governo brasileiro exerceu pressões?
Sim, mas foram intervenções absolutamente dentro da ética política e científica. É natural que o governo se preocupe em chegar a um bom termo sobre a parte que lhe cabe nas alterações climáticas. As informações sobre a Amazônia, por exemplo, são vitais para o Nordeste brasileiro e para o Estado do Amazonas. Mas também o são para o Uruguai, para a América Latina e para o globo.
Por isso o termo 'savanização da Amazônia' foi incluído?
Não há dúvida sobre os efeitos do aquecimento global sobre a floresta. Parte da Amazônia se transformará em uma savana, uma vegetação semelhante ao cerrado brasileiro. E ela virá mais cedo do que se imagina, porque se continua a desmatar. Os rios sentirão o impacto, porque a água se recicla.
Além da Amazônia, o que muda na região em que se situa o Brasil?
A Amazônia, a mata atlântica, o Pantanal, tudo muda. Mas falamos muito das mudanças do clima quando é preciso que continuemos atentos à forma como usamos o ambiente e o clima. Estive nas Sete Quedas do Iguaçu antes da construção da usina de Itaipu. Hoje, nada daquela beleza é como já foi. A culpa das mortes em um deslizamento de terras em uma encosta de morro não é do morro, não é da chuva. É da forma como o homem ocupou o morro.
Que outros efeitos relacionariam o aquecimento global ao Brasil?
A geografia e o clima não têm fronteiras. Todos os problemas estão aparecendo e resultam em surpresas terríveis como tornados, como o Catarina que assolou Rio Grande do Sul e Santa Catarina há três anos.
Como monitorar com precisão essas alterações climáticas?
Em clima, tudo se entrelaça. Temos de organizar informações em rede. É preciso que não apenas os Estados desenvolvidos do Brasil, por exemplo, tenham um monitoramento do clima eficiente. É preciso que o Piauí faça seu monitoramento. Cada região de um país continental como o Brasil tem características distintas. Mas se há mudanças, elas terão impactos continentais e globais. É importante para a América do Sul e para o mundo que estudemos cada região, cada alteração climática, seja no Nordeste brasileiro, seja na Patagônia.
Mas países em desenvolvimento, como Brasil e Argentina, estão preparados para o monitoramento?
Um dos problemas é que não temos, nos países em desenvolvimento, uma memória climática. Nas extintas florestas paraguaias, as rajadas de ventos deixavam rastros muito claros. Hoje, sequer lembramos que esses fenômenos aconteceram. Como poderemos estar preparados para o que vem se sequer conhecemos o que aconteceu? A natureza tem suas leis. E o homem não as conhece nem as obedece.
Quem é: Osvaldo Canziani
Nascido na Argentina, é físico e climatologista, com doutorado em Meteorologia pela Universidade de Londres
É especialista em impactos do aquecimento e trabalhou, por 25 anos, na Organização Meteorológica Mundial.