Título: O coelho de Páscoa de Lula
Autor: Torquato, Gaudêncio
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/03/2007, Espaço Aberto, p. A2

A decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de que o mandato obtido em eleições proporcionais pertence aos partidos e coligações, e não aos eleitos, carrega o condão de moralização dos padrões políticos, por estabelecer a fidelidade partidária, mas é incongruente com o primado da personalização que rege os pleitos eleitorais. É bem verdade que apenas 31 parlamentares (6,04%) - dos 513 eleitos e dos 5.659 candidatos que concorreram a uma vaga na Câmara dos Deputados, na última eleição - conseguiram o número de votos necessário para se eleger, o chamado quociente eleitoral. Mas também é fato que 85% dos eleitores ignoram o nome das siglas de seus escolhidos. Sob o aspecto formal, a decisão é irrepreensível. No sistema proporcional, a imensa maioria dos candidatos depende do total de votos da sigla ou da coligação para conseguir se eleger. Já no sistema majoritário, que elege os mais votados e sem necessidade de quocientes eleitorais, como é o caso dos senadores, não há o que discutir. A questão, essa, sim, de caráter polêmico, é sobre a perda de mandato dos 36 parlamentares que abandonaram seus partidos (28 para hostes adversárias). A norma que rege punições, o artigo 55 da Constituição federal, não prevê esse tipo de punição.

A interpretação da Corte eleitoral, fundamentada na tese de que inexiste candidato fora da entidade e que ¿a vinculação do partido ao candidato é ínsita ao sistema proporcional¿, é de apurado formalismo técnico, mas contraria a lógica da reputação pessoal que inspira as campanhas eleitorais. Sob esse prisma, a imposição, por via judiciária, do estatuto da fidelidade partidária, a ser confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), poderá ser inserida no conceito de ¿pérola aos porcos¿, caso não se faça acompanhar de outros dispositivos voltados para fortalecer partidos insípidos, inodoros e incolores como os nossos. Para demonstrar que o pleito eleitoral é uma disputa entre nomes, e não entre partidos, basta contabilizar o voto de legenda. Em São Paulo, com 70 deputados federais, o PSDB elegeu 18 parlamentares, com o voto na legenda sendo de apenas 4,06%, enquanto o PT elegeu 14 deputados, mas a sigla recebeu só 4,33% da votação. Já o desfile de caras e falas de candidatos na mídia eleitoral enfraquece os partidos, transformados em meros abrigos dos contendores. Na urna eletrônica o eleitor se depara com o número e o retrato dos candidatos, além do número da sigla. Se tiver dúvidas, consulta uma lista de nomes na cabine.

Portanto, todos os fluxos da campanha estimulam a predominância da pessoa sobre o partido. Mas, mesmo com esse aparato, o candidato não entra em plenário sem a ajuda do partido. E aqui nasce a raiz da decisão da Justiça. Para obter representação o partido ou coligação precisa ultrapassar o quociente eleitoral, calculado pela divisão do total de votos dados aos partidos e candidatos e o número de cadeiras disputadas. Num Estado com oito parlamentares, o quociente é o resultado da divisão de 100% pelo número de vagas, ou seja, 12,5% (100/8). Por essa regra, 94% dos eleitos assumiram o cargo em função do total de votos obtido por seus partidos ou coligações.

Não se podem, porém, desprezar os argumentos contrários à tese de que o mandato pertence ao partido, e não ao parlamentar. O que dizer do voto de um candidato eleito por uma central sindical, por uma igreja ou por uma região? Como se enquadra o voto que elege um cantor como Frank Aguiar? A fidelidade do parlamentar deve ser ao partido que endossa a candidatura, à região que reivindica postos de saúde, aos eleitores corporativos ou aos fãs? Como justificar a punição de alguém eleito com discurso de oposição que sai do partido por discordar de sua adesão ao governo? O parlamentar pode argumentar que a sigla - e não ele - traiu o ideário. Dos 36 parlamentares que deixaram os partidos originais, oito optaram por siglas da coligação que os elegeu. Estes também merecem punição?

Tivéssemos partidos fortes, o eleitor distinguiria suas linhas divisórias, selecionando perfis de acordo com as referências expressas na campanha. Vale lembrar, ainda, que o sistema proporcional de lista aberta gera contrafações. O eleitor, em muitos casos, acaba elegendo um candidato que não o seu. A maximização da vontade popular no processo eleitoral seria alcançada com a adoção do voto majoritário, pelo qual o eleitor escolheria o representante entre os candidatos, um por partido, nos distritos eleitorais. Nesse sistema, a fidelidade partidária seria bem mais eficaz.

Entremos, agora, no terreno dos efeitos. Confirmada pelo STF, a decisão sinalizará uma temporada de porteira fechada nos currais partidários, abrindo o capítulo da reforma política, na esteira da qual mecanismos como o sistema de voto e o financiamento público de campanha deverão ser apreciados. Lula vibra com a nova ordem. Afinal, tem o apoio de 376 parlamentares (73% da bancada federal). Pequena quebra - caso se confirme perda de mandatos ou o reingresso de parlamentares nos núcleos de origem - não fará fissuras na base.

O Executivo usará o rolo compressor para aprovar uma pauta de conveniências e reinar absoluto enquanto durar a lua-de-mel entre os 11 partidos situacionistas e o Palácio do Planalto. A depender do PMDB, dono do maior dote, conhecido como uma federação de nichos regionais, o ciclo melífluo atravessará os horizontes do amanhã. O mosaico peemedebista aderiu por inteiro à parede da administração lulista, tarefa inalcançável nos tempos de FHC. Por isso, o barulho dos aeroportos não tira o sono de Lula. Que se lambuza de satisfação por ganhar de surpresa um gordo coelho de Páscoa, como é esta decisão que acomodará por um bom tempo a aliança que formou ¿pensando em 20 anos¿.