Título: A dívida social e seus credores
Autor: Flores, Mario Cesar
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/04/2007, Espaço Aberto, p. A2

Estudo recente da ONU atribui altos índices de desenvolvimento humano a países de população pequena: Noruega, Irlanda, Dinamarca, Suécia e uns poucos mais - entre eles Canadá e Austrália, ambos com população modesta à vista de seus territórios e recursos. Seus padrões demográficos ajudaram a construir aqueles índices e ajudarão a mantê-los no mundo pós-industrial, do conhecimento, incapaz de gerar abundância de empregos. Em países populosos bem-sucedidos - EUA, onde a imigração pesa no aumento populacional, Japão e alguns europeus - a natalidade caiu e há até casos de decréscimo, de que resultarão problemas previdenciários no maior prazo. Como se situa o Brasil no quadro?

Até 30 anos atrás o forte aumento da nossa população era apoiado em duas idéias: a da ocupação territorial inerente à doutrina de segurança nacional da época e a da associação do progresso de país extenso à população grande, vista como mercado interno naturalmente grande. Ambas equivocadas: população grande só ajuda a segurança, se atendidos os quesitos de preparo e satisfação social solidária; e o mercado interno só é realmente grande, se o perfil de renda assegurar poder aquisitivo à maciça maioria do povo. No Brasil, a base da pirâmide, além de mercado precário, é problema social vulnerável à propaganda consumista indutora de necessidades desnecessárias e desvios comportamentais, do endividamento irresponsável ao delito, como fonte de renda para atendê-las.

O aumento da população sem desenvolvimento com qualidade, diferente do mero crescimento econômico útil ao capital e seu trabalho incluído, é socialmente discriminatório, haja vista que decênios de bom crescimento econômico não foram tão felizes no social, culturalmente mediocrizante e ambientalmente predador. Prejudica a união social-nacional (a eleição de 2006 sugeriu isso) em razão das diferenças sociais e regionais, produz migração interna desordenada e favelização aviltante, induz o assistencialismo - anestesia que insensibiliza sem curar as razões de sua necessidade, insustentável por muito tempo -, subverte a religiosidade, com fantasias míticas, e contribui para a banalização do desrespeito à lei, em clima de hipócrita tolerância societária. Finalmente: fragiliza a democracia porque a massa ressentida tende a ser receptiva ao salvacionismo populista.

Não se trata aqui de preocupação (neo) malthusiana: progresso e produção houve, há e haverá, potencial para população até maior o Brasil tem. Mas reportando ao passado para entender o presente: difícil teria sido o desenvolvimento sadio, combinando liberdade política, crescimento econômico, redução do descalabro social e cuidado ambiental, com a população crescendo além da capacidade de investimento público e privado, de 30 a 180 milhões de 1930 a 2000: educação, saúde, habitação e saneamento, energia, transporte, investimento gerador de empregos, para quatro Argentinas em 70 anos... Políticas corretas e oportunas poderiam ter reduzido as dimensões do problema atual, mas é improvável que o tivessem resolvido de todo.

A natalidade vem caindo há pelo menos 20 anos e já se aproxima de índice razoável, com forte contribuição dos estratos médio e superior da pirâmide social; embora menos, também da base, onde é alta a maternidade precoce. Mas os efeitos do passado fértil se prolongarão por algum tempo, agravados pela exigência de produtividade na economia moderna, que condena o trabalho mal qualificado ao subemprego e à informalidade, comumente exercida na ilegalidade. Mais ainda no processo necessário à redução do hiato que nos separa do Primeiro Mundo, de ascensão da economia de baixa tecnologia à de maior valor agregado, que precisa de menos gente mais bem preparada - problema só parcialmente superável no número, mantido o requisito preparo, pelo desenvolvimento multiplicador da oferta de emprego.

O atraso fordista no relógio socioeconômico e seus artifícios, por vezes aventados, menos tecnologia e menor jornada de trabalho, com mais gente trabalhando, prejudicam a competitividade e a aproximação do mundo mais desenvolvido, salvo se adotada a contenção dos salários e da proteção social, com risco de turbulência e necessidade de controle autoritário. Poderia a China ser o que está sendo, com eleições, imprensa e reivindicações sociais livres, direito de greve e cultura consumista intensa? A combinação de seu progresso econômico com a redução do aumento populacional e a melhora do nível educacional vai gerar pressão social que, mais dia, menos dia, chegará à revisão do seu modelo autoritário e à maior presença daquelas virtudes democráticas, segurando a economia em ritmo menos intenso do que o atual.

O resgate da nossa dívida social exige ação do Estado em saúde, habitação, saneamento e educação, essa decisiva para o emprego digno no mundo moderno. Mas a ação estatal precisa ser ajudada pela atenção à natalidade e há espaço democrático para campanhas de esclarecimento na escola, na mídia e nas organizações comunitárias, complementadas pela oferta de facilidades anticoncepcionais. Embora o passado deva prosseguir influenciando negativamente por algum tempo, o senso de paternidade-maternidade responsável é indispensável para evitar que o resgate seja prejudicado pela lógica circular perversa, em que o aumento do número de credores cerceia a melhora da situação e pereniza a dívida.

Em suma: a paternidade-maternidade responsável é condição para que no maior prazo o tão falado crescimento possa ocorrer com significativa elevação da qualidade de vida da base da pirâmide e a conseqüente redução do desrespeito epidêmico à lei, das agressões socioambientais e do descompasso entre inclusão política e social - essa, uma redução necessária à cidadania política protegida das injunções da miséria e ignorância, deformadoras do processo democrático.