Título: O Congresso não lê o que vota
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/04/2007, Notas e Informações, p. A3

Já se tornou rotineira a aprovação de leis penais votadas às pressas pelo Legislativo, para dar uma resposta ao clamor popular que se ergue após a ocorrência de crimes de repercussão nacional. Escritas em momentos de crise, insegurança e forte emoção, essas ¿leis de ocasião¿ tendem a trazer mais problemas do que soluções, em termos de combate à violência criminal, desequilibrando o sistema de penas e sobrecarregando as instituições encarregadas de aplicá-las - o Ministério Público e o Judiciário.

Com as recentes mudanças introduzidas na Lei dos Crimes Hediondos, dois meses após o assassinato do menino João Hélio Fernandes Vieites, no Rio de Janeiro, essa tradição infelizmente foi reafirmada. Justificadas em nome do aumento do rigor das condenações, as inovações tramitaram a toque de caixa no Legislativo, parlamentares as aprovaram sem saber o que estavam votando, o presidente da República as sancionou sem avaliar as conseqüências e agora promotores e juízes descobrem que as novas regras afrouxam a legislação penal, em vez de endurecê-la.

Trata-se de uma sucessão de erros onde se misturam inépcia, demagogia, açodamento e concessões ao ¿politicamente correto¿. Tudo começou em 14 de fevereiro, uma semana depois da morte de João Hélio, quando a Câmara desengavetou um projeto de autoria do Executivo e o aprovou por votação simbólica, em meio a aplausos e discursos entusiasmados. A idéia dos deputados era aumentar o rigor na concessão do ¿regime de progressão¿, que permite a apenados passar do regime fechado para o regime semi-aberto e até obter a liberdade condicional. Atualmente, o benefício é concedido após o cumprimento de um sexto da pena. Pelo novo regime, os benefícios só são concedidos após o cumprimento de dois terços, se o condenado for primário, e três quintos, se for reincidente.

O problema é que, por descuido e inadvertência, os parlamentares também aprovaram o dispositivo que permite a autores de crimes hediondos aguardar em liberdade o julgamento de seus processos. Esse tratamento leniente a criminosos de alta periculosidade foi concedido sem debate público e o autor do pedido de urgência, deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP), numa confissão de incompetência, admite que não percebeu esse ¿detalhe¿.

¿A nova lei não está endurecendo nada. Ela é mais benéfica para o criminoso. Tempos duros exigem leis duras¿, diz o juiz criminal Ítalo Morelli. Para o presidente da Associação Paulista dos Magistrados, desembargador Sebastião Amorim, a concessão de liberdade provisória a autores de crimes hediondos só aumenta o sentimento de impunidade. ¿Fomenta o pensamento de que a Justiça não funciona. Mas não é a Justiça, é a lei que não funciona. O Congresso demora para agir. E só acorda com o clamor público. Mas as coisas têm de ser feitas com calma. Tudo que é feito no afogadilho causa problemas¿, conclui.

O tratamento leniente a autores de crimes hediondos foi uma das medidas previstas por um projeto elaborado pelo Executivo em 2006. Ao justificá-la, o então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, disse que ela foi concebida para ¿adequar¿ a Lei dos Crimes Hediondos ao ¿entendimento das instâncias superiores¿ da Justiça. ¿Pretende-se evitar os efeitos negativos da privação de liberdade quando, diante do exame das circunstâncias do caso concreto, a medida se mostrar eventualmente desnecessária¿, afirmou, invocando decisões do STF.

A justificativa é insólita, pois não cabe ao Executivo e ao Congresso pautar seus projetos de lei pela jurisprudência dos tribunais. No Estado de Direito, os tribunais superiores não têm titularidade de iniciativa legislativa e são obrigados a firmar seu entendimento a partir das leis em vigor. Não menos absurda é a preocupação do então ministro com ¿os efeitos negativos da privação de liberdade¿ de criminosos violentos. Ao relegar para segundo plano as taxas de reincidência desses delinqüentes, ele se esqueceu dos ¿efeitos negativos¿, sobre a sociedade, dos crimes que cometem.

O então ministro justificou um projeto equivocado que a Câmara, demagogicamente, aprovou às pressas, num momento de comoção, sem perceber que, em vez de endurecer a legislação penal, ele multiplica os ¿direitos¿ de autores de crimes hediondos, tornando a sociedade refém da violência.