Título: Mais salário, menos trabalho
Autor: Kramer, Dora
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/04/2007, Nacional, p. A6

Com boa-vontade em doses amazônicas e pureza de alma em dimensões oceânicas seria possível saudar a decisão da Câmara dos Deputados de oficializar a semana de três dias de trabalho como uma vitória da transparência.

Mas, como o Parlamento vem paulatinamente perdendo direito até ao benefício da dúvida, não há outra maneira de ver o gesto, a não ser com a frieza e o realismo que ele merece: é a sagração da impudência.

Reunidos com a direção da Casa, os líderes dos partidos decidiram na terça-feira dar caráter oficial ao que até então era só uma prática condenável, origem da relação de animosidade e descrença entre o Legislativo e a sociedade.

No fundo da insatisfação que faz do Congresso a instituição menos acreditada junto à opinião pública está a percepção de que o Parlamento não trabalha - ou pelo menos não trabalha conforme a expectativa dos eleitores por ele representados - e ganha muito.

Pois suas excelências, exaustas de tanto fingir que atendiam à demanda pela recuperação da imagem do Legislativo nestes últimos dois meses, na terça-feira resolveram de uma só vez confirmar a má impressão: na mesma reunião aboliram as sessões deliberativas das segundas-feiras e aprovaram o aumento de seus subsídios de R$ 12.847 para R$ 16.250.

Transformaram em lei o slogan 'mais salário, menos trabalho' usado nos anos 80 pelo movimento estudantil para brincar com as reivindicações dos sindicatos.

Com isso, desmoralizaram duas orientações do presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia - a realização de sessões de segunda a sexta e o adiamento da discussão salarial -, que estava querendo se notabilizar pela austeridade e labor.

Como Chinaglia rendeu-se facilmente à pressão, é de se concluir que ou a operosidade e o rigor anteriores eram demagogia pura ou o presidente da Câmara não teve autoridade para impor a boa regra na Casa.

Os deputados argumentam que precisam da segunda-feira para cuidar das 'bases'. Como precisam também das sextas-feiras, ficou oficial: semana de deputado federal é de três dias de trabalho para quatro de folga.

Com a vantagem de que agora nem correm o risco de ter os salários descontados em caso de mau humor do presidente.

Se os parlamentares usam as segundas e sextas-feiras para atender aos pleitos das bases, convenhamos, é problema deles.

Diz o deputado Jovair Arantes em defesa da sistemática: 'Deputado que não volta às suas bases é deputado de um mandato só.' Pois então que cuidem das respectivas sobrevivências políticas nos fins de semana, já devidamente financiados por passagens e escritórios pagos pela Câmara.

O colegiado parlamentar continua reivindicando conforto total para o exercício de suas funções, mas desconsidera o momento delicado: a população não os reconhece como merecedores de nenhuma compensação. Ao contrário: gostaria de ver da parte deles sinais de sacrifício, abnegação ou, no mínimo, o cumprimento correto dos mandatos.

Deveriam mostrar bom serviço primeiro e, só depois, pedir a recompensa. Se é que a recompensa se faz necessária, se já não é suficiente terem recebido a delegação do mandato ao qual se candidataram por livre e espontânea vontade. Ou teria sido por cobiça e vaidade?

Do jeito que vai, depois daquela que foi considerada a pior legislatura de todos os tempos - cheia de escândalos e acertos nefastos -, os deputados recém-eleitos vão acabar conseguindo cumprir o emblema segundo o qual o Congresso seguinte é sempre pior que o anterior.

Se em dois meses e meio já conseguiram tornar oficial o que era uma prática condenável, os céus nos livrem do que serão capazes de fazer em quatro anos.

Rota conhecida

O governo federal leva a Polícia Federal em banho-maria, evitando cumprir o acordo salarial firmado há um ano com o então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. A primeira parcela foi paga, faltam 30% dos 60% prometidos.

Os policiais têm feito protestos e advertências na forma de operações-padrão pontuais, a insatisfação cresce e a carruagem vai andando pelo mesmo caminho que deu no motim dos controladores de vôo.

Outro mundo

As evasivas e o devaneio marcaram a audiência pública do ministro da Defesa, do comandante da Aeronáutica e do presidente da Agência Nacional de Aviação Civil, na Comissão de Defesa do Consumidor na Câmara.

Em tom veemente, Waldir Pires desconversou, não respondeu às perguntas dos deputados e declarou, solene, que os problemas no tráfego aéreo datam do acidente 'do' Gol.

O brigadeiro Juniti Saito considerou que o ministro 'expôs bem o problema' e o presidente da Anac, Milton Zuanazzi, assegurou que não há crise; 'estamos longe', disse.

Em resumo, nada do que se passou aconteceu.

Enquanto isso, os controladores continuam mobilizados - agora prometendo uma baixa coletiva da Aeronáutica - e o governo segue desmobilizado, fiando-se na popularidade de Lula.