Título: O mistério do Papa
Autor: Di Franco, Carlos Alberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/04/2007, Espaço Aberto, p. A2
Muitos dos que acompanham, na mídia e na história, a devoção e o carinho pelo papa ficam se perguntando pelo enigma dos numerosos católicos, que, ao mesmo tempo que manifestam um intenso afeto e uma comovida adesão ao papa Bento XVI, parecem recusar ou contornar os seus ensinamentos em questões morais de candente atualidade, como as relativas à família, à sexualidade e à bioética. Será um fracasso do papa? Será obstinação na defesa de valores ultrapassados que - segundo dizem alguns - os próximos papas deveriam mudar?
Na verdade, o que move e comove multidões, a começar pelos católicos - com manifestações de adesão entusiasmada que impressionam a mídia e o mundo -, é, acima de tudo, a evidência de que o papa é um homem de fé, que vive e prega em plena coerência com a verdade cristã em que acredita, e que, sendo ou não compreendido, jamais abdica do seu dever de trazer ao mundo e, em primeiro lugar, aos católicos, o ¿esplendor da verdade¿.
Se Bento XVI procurasse o ¿sucesso¿ - que parece ser a medida suprema da realização para os que tudo medem pelos ibopes -, bastaria que, esquecendo-se da verdade, se bandeasse pouco a pouco, como fazem certos teólogos, para os ¿novos valores¿ (em linguagem cristã, ¿contravalores¿), que cada vez mais tentam dominar o mundo.
É patente que, na hora atual, vivemos numa encruzilhada histórica em que são incontáveis os que parecem andar pela vida sem norte nem rumo, entre as areias movediças do relativismo e os nevoeiros do niilismo. O papa tem plena consciência dessa situação, e, em vez de sentir a tentação daqueles teólogos que aspiram aos afagos do mundo, para dele receber diploma de ¿modernos¿ e ¿progressistas¿, entrega a vida pela verdade que pode resgatar este mundo, sem se importar minimamente com que o chamem de retrógrado, conservador e desatualizado.
Ou será que querem um papa que deixe de ser cristão para ser melhor aceito? Pretendem que, perante esse deslizamento do mundo para baixo, com a glorificação de todas as aberrações ideológicas e morais, o papa exerça a sua missão acompanhando a descida, cedendo a tudo e se limitando a um vago programa socioecológico, a belos discursos de paz e amor e a um ecumenismo em que todos os equívocos se possam abraçar e congraçar, por que ninguém acreditaria mais em coisa alguma, a não ser em ¿viver bem¿?
Num mundo que diviniza a liberdade como único bem e única fonte de valores, o papa não se cansa de proclamar que a liberdade, desvinculada da verdade, se corrompe e acaba levando a uma explosão de egoísmo pessoal e coletivo que destrói a dignidade do ser humano. Sem o referencial ¿verdade¿, sem a referência a valores comuns e a uma verdade absoluta para todos, a vida social aventura-se pela insegurança de um relativismo total. Então, tudo é convencional, tudo é negociável, inclusive o primeiro dos direitos fundamentais, o da vida.
Por isso, recusa-se a aceitar a nova ¿cultura da morte¿, a do aborto, a do infanticídio, a da eutanásia; e, igualmente, a cultura da morte do amor entre o homem e a mulher, da destruição do casamento e da família, minados pela idolatria do prazer sexual espanado; e denuncia sem tréguas a cultura hedonista, que, além de matar os inocentes incômodos, leva cada vez mais jovens ao afundamento pessoal no abismo do álcool e das drogas e da depressão psicológica de uma vida sem sentido.
E os católicos? E os jovens católicos que vibram com o papa e depois seguem a onda da cultura hedonista? Que dizer desses católicos? Não há aí um fracasso?
Uma resposta válida, mas excessivamente simplista, seria a de dizer que são filhos do seu tempo. Uma resposta mais profunda exige algo mais, ainda que seja doloroso recordá-lo. Várias gerações de jovens católicos foram traídas por muitos daqueles que, detendo a autoridade educativa na Igreja, se deixaram enfeitiçar pela embriaguez da ¿modernidade¿ e, no anseio de ¿dialogar com o mundo moderno¿, a única coisa que fizeram foi capitular diante dos equívocos do mundo e deixar os jovens a eles confiados mergulhados num mar de incertezas.
A visita de Bento XVI ao Brasil será, sem dúvida, um testemunho de fé, convicção e coragem. Ao contrário dos que dentro da Igreja cederam aos apelos da secularização, o papa sempre acreditou que a firmeza na fé e a fidelidade doutrinal acabarão por galvanizar a nostalgia de Deus que domina o mundo. Acredita que o esgotamento do materialismo histórico e a frustração do consumismo hedonista prenunciam um novo perfil existencial. Ao contrário dos ¿vencidos da vida¿, que querem curar a doença mergulhando mais a fundo nela, Bento XVI, como o fez seu grande predecessor e, sem dúvida, o farão os seus sucessores, entrega-se, sem pausas nem cansaço, à missão de erguer muito alto a marca da verdade cristã.
Essa verdade nunca foi fácil. Aos primeiros cristãos, acarretou-lhes a incompreensão, a perseguição, o ódio e o martírio. Fracasso? Não. Suprema vitória, que abriu no mundo o sulco dos valores cristãos que impregnaram a nossa civilização do melhor que ela já teve e conserva. Vitória intolerável para os totalitarismos ideológicos de todos os tempos e coloridos. Mas vitória desejada por incontáveis cristãos, especialmente a juventude, capaz de vibrar com desafios exigentes, mas refratária às propostas de um cristianismo light.
O imã do papado, do atual e de todos, reside, como disse alguém, num enigma: o papa, como tal, representa não, em primeiro lugar, um grande entre os grandes da Terra, mas o único homem no qual milhões de pessoas vêem um vínculo direto com Deus, o vigário de Cristo na Terra. Este é, de fato, o cerne do fenômeno.