Título: Brasil e Chile - jogo de espelhos
Autor: Werneck, Rogério L. Furquim
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/04/2007, Economia, p. B2

Em sua avaliação semestral das perspectivas da economia mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) destaca Brasil e Chile como as duas economias latino-americanas que deverão destoar do quadro de desaceleração de crescimento esperado para a região em 2007. O FMI prevê que o Brasil vá crescer 4,4% este ano, acima da expansão de 3,7% de 2006 e até da taxa média de 4,1% observada no triênio 2004-2006. Quanto ao Chile, que cresceu 4% em 2006, a previsão do FMI é de expansão de 5,2% em 2007. Ao distinguir as duas economias do resto da região, as previsões do FMI ensejam reflexões sobre o desempenho econômico do Brasil e do Chile nas últimas décadas. Tanto a experiência do Brasil ajuda a entender com mais clareza o que ocorreu no Chile como a experiência do Chile ajuda a enxergar com mais nitidez o que se passou no Brasil.

Desde a redemocratização do país, em 1990, o Chile vem crescendo a uma taxa média de 5,3% ao ano, ou seja, bem mais que o dobro da taxa anual média de expansão de 2,3% que, aos trancos e barrancos, a economia brasileira manteve nesse período. O que causa especial admiração no sucesso do Chile é a persistente eficácia da ação coletiva da sociedade chilena, que tem permitido condução competente da política econômica. Um Poder Executivo forte, combinado com um sistema eleitoral que mantém o processo político dominado pela concorrência entre duas coalizões partidárias estáveis, tem dado ao Chile níveis de governança e institucionalidade que contrastam com o que se observa em outros países da região.

É mais do que natural que o excelente desempenho da economia chilena venha sendo atribuído, tanto no Chile como no exterior, às virtudes e à vitalidade da nova democracia que floresceu no país a partir de 1990. Contudo, análise mais detida do que vem ocorrendo levanta indagações delicadas que, por razões óbvias, os próprios chilenos vêm tentando evitar. Não seria o caso de atribuir parte substancial do sucesso econômico do país nos últimos 17 anos às peculiaridades do odioso regime militar que oprimiu a sociedade chilena nos 17 anos anteriores a 1990? Hoje se sabe que o governo Pinochet foi não só brutal, como corrupto. Mas sua brutalidade já parece razão mais do que suficiente para fazer com que essa indagação soe como pergunta altamente inconveniente.

A verdade, no entanto, é que, por mais brutal que tenha sido, o regime autoritário que prevaleceu no Chile de 1973 a 1990 legou à democracia chilena condições iniciais que acabaram ajudando em muito o bom desempenho econômico que teve o país ao longo dos últimos 17 anos. A parte mais óbvia do argumento diz respeito ao programa radical de reformas estruturais do regime militar, envolvendo privatização, liberalização comercial, reestruturação da previdência social, redesenho do sistema tributário e reconcepção das relações trabalhistas. Menos óbvia é a constatação de que as condicionalidades impostas pelo regime militar ao ritmo do processo chileno de redemocratização impediram, por exemplo, que se repetisse no Chile desastre similar ao que representou no Brasil, logo no início da redemocratização, a farra fiscal da Constituição de 1988, que explica boa parte da enorme diferença que hoje existe entre a carga tributária do Brasil e a do Chile.

O timing da redemocratização chilena ajudou bastante. Ter a volta da democracia ocorrida após a queda do Muro de Berlim fez muita diferença, assim como as dimensões mais significativas da diáspora chilena, na esteira da brutalidade do regime militar. Boa parte da elite política do país se viu forçada a penoso processo de aggiornamento, seja testemunhando, na Europa Oriental, a dura agonia dos regimes comunistas, seja presenciando, na Europa Ocidental, o surgimento de uma reavaliação profunda dos limites e possibilidades do papel do Estado na economia.

São questões difíceis, mas que não podem ser evitadas, pois ajudam a entender com mais clareza o que vem ocorrendo no Chile nos últimos anos. Não se trata de escolher caminhos ou de relevar as barbaridades da ditadura chilena, mas de perceber diferenças entre caminhos já trilhados. A verdade inescapável é que os regimes militares do Brasil e do Chile condicionaram de formas bem diferentes o desempenho econômico posterior dos dois países.