Título: Pirandelismo tropical
Autor: Abreu, Marcelo de Paiva
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/04/2007, Economia, p. B2
Por muitas razões, a Sicília pode servir de inspiração a quem analisa o Brasil. No plano mais óbvio, a pujança do crime organizado e sua influência tentacular em todos os setores da sociedade brasileira fazem com que se tema a repetição da preponderância mafiosa que ainda marca a vida siciliana. No plano mais abstrato, há relevância para o Brasil da visão pessimista do príncipe de Lampedusa quanto à Sicília de meados do século 19 e a Sicília de sempre. Salina e Tancredi não pareceriam deslocados no Brasil de hoje, que também pode ensejar desde o muito batido 'se queremos que tudo permaneça como está, é preciso que tudo mude', até o injustamente menos conhecido 'depois será diferente, mas pior'. Uma versão lampedusiana do dito popular siciliano, também oportuno: 'il peggio no c'è mai fine', ou 'o pior nunca tem fim'. Mas, ao ler a imprensa brasileira nas últimas semanas, o siciliano que vem à mente com mais intensidade não é nem o bandido Giuliano nem o príncipe di Casa Salina, e sim Luigi Pirandello e sua perpétua busca da verdade multifacetada. Em Assim é, se lhe parece imortalizou a idéia de que a verdade é relativa. Não interessa o fato, interessam mais as versões sobre o que ocorria com a família Ponza.
Algo semelhante se aplica ao atual debate sobre a política de juros no Brasil. É como se tudo devesse convergir para a crítica, em muitos casos desabrida, ao conservadorismo do Banco Central. A linha de frente dos críticos inclui os chorões crônicos, permanentemente dispostos a correr o risco de uma inflação um pouco maior em troca de um nível de atividade um pouco maior e de maior competitividade em relação às importações competitivas. Não há surpresa neste comportamento. Empresários agem racionalmente, preferem mais lucros a menos lucros. O que talvez seja mais surpreendente é que tais manifestações freqüentemente se pretendam de defesa de interesses nacionais, não de interesses próprios. As fileiras empresariais têm sido significativamente engrossadas por decision-makers menos bem-sucedidos quando de pretéritas passagens pelo governo e por muitos analistas, inclusive na mídia, chamuscados pelo sucesso da política monetária implementada pelo Banco Central nos últimos quatro anos.
A politização do debate sobre a política monetária levou à leitura seletiva de artigo recente de Márcio Garcia no jornal Valor, sobre a relação entre a apreciação cambial e a manutenção de juros reais mais altos no Brasil do que no resto do mundo, foco das críticas mais veementes à atual política econômica. O seu argumento é que, ao contrário do que alegam alguns analistas, a taxa de câmbio é, de fato, influenciada pelo diferencial de juros e que, se a política de juros resultasse no cancelamento do diferencial que propicia ganhos de arbitragem, a taxa de câmbio estaria entre 2,15 e 2,30 R$/US$. Ao final do artigo, reitera taxativamente que, de longe, a principal explicação para a apreciação cambial é a persistente balança comercial favorável.
Mas o 'assim é, se lhe parece' é inexorável. Diversos leitores do artigo preferiram enfatizar o argumento de que há relação entre câmbio e juros e concluíram que o autor, de fato, asseverava que flexibilização significativa da política monetária poderia ter resultados muito relevantes quanto à desejada reversão da apreciação cambial. E, no entanto, o que se constata é que não há no argumento razões para que se perceba mudança significativa no diagnóstico que justifica a essência da política econômica, a sua formulação ou a sua implementação. O diferencial entre juros domésticos e externos é conseqüência de decisões de cunho estratégico sobre metas inflacionárias. Só há dois caminhos para flexibilizar significativamente a política de juros: ou questionar a natureza da relação entre inflação esperada e nível da taxa de juros ou redefinir as metas inflacionárias no longo prazo.
A exacerbação das pressões para que se flexibilize a política monetária é especialmente preocupante porque as tendências à apreciação cambial do real parecem inexoráveis, a menos de uma reviravolta súbita do quadro externo. Não há sinais perceptíveis de deterioração significativa dos resultados da balança comercial, a despeito das muitas previsões catastrofistas que tiveram a mesma origem das atuais críticas à política monetária. Com o aumento da probabilidade de que o País obtenha investment grade em prazo relativamente curto haverá, tudo mais constante, um impacto favorável na conta de capital do balanço de pagamentos.
A única voz sensata que se ouviu no governo, fora do Banco Central, quanto às conseqüências da apreciação cambial foi a do novo ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Miguel Jorge, que afirmou que 'o empresário incompetente, improdutivo e ineficiente não pode ser defendido pelo ministro' e que 'o que é bom para uns nem sempre é bom para outros'. Finalmente, um ministro do Desenvolvimento que parece saber o que é restrição orçamentária. A alegria durou pouco: no lance seguinte, o novo ministro viu frustrado o seu projeto de manter o desenvolvimentismo sob relativo controle no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).