Título: Solo tropical
Autor: Graziano, Xico
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/04/2007, Espaço Aberto, p. A2

A conservação do solo se destaca na agenda da agricultura sustentável. Base da produção, é na fartura da terra que vinga a riqueza das plantas e dos animais, fornecendo alimentos, matérias-primas e, agora, energia renovável. Cuidar do solo significa garantir o futuro.

O Dia Mundial da Conservação do Solo se comemora em 15 de abril. A data homenageia o nascimento, em 1881, do norte-americano Hugh Bennett, considerado o pai da conservação do solo. Um pioneiro.

Antiga bandeira da agronomia, por aqui o conservacionismo rural ganhou fama por volta de 1960, quando deslanchou a agricultura comercial. Foi nessa época que o combate da erosão virou credo da boa prática agrícola.

Acontecia que, derrubada a mata, as torrenciais chuvas arrebentavam o terreno plantado, provocando enxurradas de lama. Farta vegetação atlântica cedia lugar a terríveis voçorocas, tristes cicatrizes na natureza. Algo de errado acometia a agricultura tropical.

Os agrônomos reagiram. A ordem era o plantio em curvas de nível, evitando ¿descer o morro¿ com o arado. Tal prática, um verdadeiro horror técnico, se implantou para facilitar que os animais, bois ou burros, agüentassem puxar o implemento, rasgando o solo na inércia da descida. Coisa de antigamente.

Com a força da tratorização, surgiram os ¿terraços¿. Trata-se de um ondulado patamar, levantado sobre o terreno, exigido para cortar a descida da água. Quanto mais inclinada a superfície, mais próximos, uns dos outros, os murunduns de terra. Uma idéia sensata contra o mal da erosão.

Na década de 1970, em pleno regime militar, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) premiava os melhores agricultores do País, medindo a produtividade da terra e seu cuidado com o solo. Concursos se promoviam País afora. Expediam-se medalhas e diplomas de reconhecimento aos produtores rurais, pelos préstimos à Pátria. Bons tempos.

A conservação do solo fez escola, criou paradigma. Naqueles tempos de devastação florestal, parecia subversivo defender a natureza. Uma turma aguerrida, porém enfrentou a parada. Notáveis profissionais destacaram-se no extinto Departamento de Engenharia e Mecânica Agrícola (Dema), órgão da Secretaria da Agricultura paulista. Guido Ranzani, 92 anos, lúcido, professor aposentado da gloriosa Esalq, em Piracicaba, bem representa essa geração, cujos seguidores se espalharam pelo serviço público e tiveram na equipe do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) sua grande expressão.

A urbanização acelerada, todavia, exigia escala e rapidez da produção rural. E a pressa é inimiga da perfeição. A campanha conservacionista sucumbiu à modernização da agropecuária verificada pós-1970. O fantasma da erosão do solo fazia sério estrago na roça, assoreando córregos, engolindo sementes, lavando fertilizantes. O plantio em nível não resistia ao terror da enxurrada. Que fazer?

Em 1973, o agricultor Herbert Bartz experimentou em Rolândia (PR) uma nova técnica, conhecida como ¿plantio direto¿. Logo em seguida, as cooperativas regionais a introduziram nos campos. Recém-criados, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e o Instituto Agronômico do Paraná (Iapar) participaram da novidadeira empreitada. Sinal de sucesso.

Resultado: nascia outro método, este, sim, revolucionário, no combate à erosão do solo. Qual a diferença? O plantio direto renega a aração e a gradeação do terreno, realizando a semeadura sem revirar o solo. Parece incrível, mas essa mudança significou o ¿pulo-do-gato¿ da agricultura brasileira.

Minhoca só aparece em solo fértil. Em 1979 surge, em Ponta Grossa, no Paraná, o primeiro ¿Clube da Minhoca¿. Depois, aparecem os ¿Clubes Amigos da Terra¿. Cresce em todo o País o movimento em favor do Sistema de Plantio Direto (SPD).

Com o avanço da tecnologia mecânica e o uso de herbicidas biodegradáveis, o novo processo se aprimorou, expandindo-se pelo cerrado no Centro-Oeste. O resultado é, simplesmente, fantástico. Sem arar nem gradear, gasta menos combustível, não compacta o solo, custa mais barato e ainda elimina a erosão. Só vendo para crer.

A mudança do paradigma científico se encontra num livro extraordinário, intitulado Manejo Ecológico do Solo, lançado em 1979 pela agrônoma Ana Maria Primavesi. Nunca, antes, alguém expusera, com tanta clareza, a diferença entre as características do solo tropical e do temperado. Tornou-se um ícone entre o moderno conservacionismo.

Nos países frios, revirar o solo com o arado expõe sua profundeza, aquecendo-o ao sol no final do inverno. Surge benéfico. Nos trópicos, o efeito é deletério, pois expõe o solo úmido ao raio torturante, queimando sua matéria orgânica. Aniquila, em vez de estimular, a vida microbiana. Pior: libera carbono para a atmosfera.

A mecanização intensiva provoca a compactação do solo, geralmente na linha de 30 centímetros abaixo da superfície. Cria uma crosta dura para as raízes, impermeável no terreno, incapaz de oferecer percolação para a água de chuva. Favorece, dessa forma, a erosão. Bê-á-bá da nova agronomia.

Cada centímetro de solo exige séculos para se formar. Custa uma fortuna na contabilidade da natureza. Nesses tempos de aquecimento global, teme-se pela desertificação, que dramaticamente já se verifica em certas áreas agrícolas do mundo, incluindo o semi-árido nordestino. Nova batalha terá de ser vencida pelos conservacionistas.

A cada época, um desafio. Parece um alerta, quase um castigo, como se aos agricultores fosse necessário sempre lembrar que o solo é patrimônio da humanidade.