Título: Trambique federal
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/04/2007, Notas e Informações, p. A3

São estarrecedoras, para dizer o mínimo, as justificativas apresentadas por um volumoso grupo de deputados federais para receber uma tal de verba indenizatória que, desde 2001, engorda os rendimentos dos 513 parlamentares. Nos meses de fevereiro e março, os primeiros da atual legislatura, foram gastos R$ 2,5 milhões em combustíveis, o suficiente para comprar cerca de 1 milhão de litros de gasolina, como revelou o Estado na segunda-feira. No total, foram pagos naquele período R$ 11,2 milhões em verbas indenizatórias que cobriram notas fiscais referentes a tudo, desde alugueres e custeio de escritórios eleitorais nos Estados até fretamento de barcos e aviões. Tudo isso à custa do contribuinte.

Cada deputado tem direito, por decreto legislativo proposto e aprovado à época em que o hoje governador Aécio Neves era presidente da Câmara, a uma verba mensal de R$ 15 mil, que não pode ultrapassar R$ 180 mil no ano. Aquilo que não é gasto no mês, acumula com o crédito do mês seguinte. O gasto com combustíveis foi limitado a R$ 4,5 mil mensais, depois que o Tribunal de Contas da União (TCU) encontrou indícios de uso de notas frias e de superfaturamento. Mas isso, como tudo o que se refere à verba indenizatória, é para inglês ver.

O Estado pesquisou as contas de fevereiro e março de 512 deputados em exercício e de 22 licenciados ou que deixaram o mandato. Apenas 42 deputados não pediram reembolso de despesas. Dos que cobraram a verba indenizatória, 97 ultrapassaram o teto permitido. Essa lista é liderada pelo deputado Deley (PSC-RJ), com R$ 43.585,41. A chefe de seu gabinete diz que esse número, embora conste da contabilidade da Câmara, está errado. Teriam sido efetivamente gastos R$ 25.882,38, em erro que só foi constatado quando o gabinete do deputado foi procurado pela reportagem. Já os deputados Miguel Martini (PHS-MG) e Fernando de Fabinho (DEM-BA), que obtiveram reembolso de R$ 43.535,52 e R$ 43.040,95, respectivamente, não fizeram correções. E é freqüente a apresentação de notas fiscais de compra de combustíveis com o detalhe de centavos, mas que, somadas, resultam em exatos R$ 4,5 mil.

E ainda há deputados que não gostam desse sistema. O deputado Virgílio Guimarães (PT-MG), por exemplo, acha desagradável que um parlamentar tenha de pedir nota fiscal para tudo. E, assim, no mês passado, a Comissão de Finanças aprovou projeto que permite a cada deputado gastar mensalmente, sem comprovação, entre R$ 2.416,81 e R$ 5.416,81.

Os deputados que declararam ter esgotado a cota de combustível do bimestre rodaram o equivalente a mais de três viagens de ida e volta entre os pontos extremos do País - ou abasteceram uma frota. Os abusos não param aí. O deputado Miguel Martini, por exemplo, alega que foi o vice-campeão de gastos porque teve de comprar material gráfico para agradecer aos eleitores que o sufragaram em outubro. E o deputado Paulo Rubem Santiago (PT-PE) diz manter um programa de cinema itinerante em Pernambuco com a verba da Câmara.

A verba indenizatória foi criada para aumentar os salários dos deputados. Como não havia condições políticas para aprovar um aumento de mais de 100%, armou-se um conluio que camuflava a majoração sob a forma de verba indenizatória. E, como sempre ocorre nesses casos, a hipocrisia prestou homenagem à virtude: criou-se a obrigatoriedade da apresentação de notas fiscais.

Essa liberalidade com dinheiro público constitui, entre tantas outras, mais uma causa de desmoralização e desprestígio do Legislativo. A verba indenizatória, em si imoral, contamina uma parte do corpo legislativo com a prática de pequenas malandragens contábeis - isso quando o parlamentar não se dispõe a mandar às favas, de uma vez, os limites de gastos.

E tudo se dá sob a sombra da legalidade. Como afirma o procurador-geral do Tribunal de Contas da União, Lucas Rocha Furtado, ¿podemos achar ruim, mas não é ilegal¿. Ocorre que se montou um sistema que torna virtualmente impossível a verificação de cada uma das notas fiscais apresentadas pelos deputados. A Câmara não dispõe de funcionários para fazer essa inspeção. O TCU também não pode auditar essas contas.

Dar-se uma verba indenizatória de R$ 15 mil mensais já era um escândalo. Como classificar a indecência que é a extrapolação desse capilé?