Título: Ascensão lembra a epopéia napoleônica
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Fonte: O Estado de São Paulo, 24/04/2007, Internacional, p. A12

Boris Yeltsin entrou para a história em agosto de 1991. Uma entrada fulgurante: ele projeta uma dessas belas gravuras que cada povo coleciona para destacar as grandes mudanças de rota do seu destino, Napoleão na Ponte de Arcole, Tiradentes...

Há alguns anos, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a poderosa, a aterradora URSS de Lenin, Stalin, Beria, Kruchev ou Brejnev se desfazia. Tendo sucedido a uma série de czares vermelhos, fatigados e impotentes, Mikhail Gorbachev tenta desesperadamente salvar o comunismo. Foi a fase da 'perestroika' e da 'glasnost'.

Mas quando um império das sombras e do terror se decompõe, é muito difícil frear a queda. A imensa URSS, consumida pela aversão, pelo cansaço e pelo poder crescente dos Estados Unidos e do Ocidente e pela esperança do papa João Paulo II, perde seus membros um a um, como um corpo atingido pela gangrena. Em 1989, o Muro de Berlim, símbolo da Guerra Fria, cai sob o assalto da população. Um após o outro, os feudos esculpidos pela URSS no corpo moribundo da Europa Oriental despertam e se revoltam.

Gorbachev lutou como um demônio para retardar o colapso total. Mas, mal fechava uma brecha e um abismo se abria ao lado. Em agosto de 1991, esgotado pelo seu trabalho de Sísifo, ele vai passar alguns dias de férias na Criméia. No dia 19 de agosto, aproveitando a sua ausência, um grupo de 'golpistas' o bloqueia na Criméia e toma o poder em Moscou. Yeltsin, que na ocasião presidia a Federação Russa (a maior das repúblicas que formavam a URSS), se precipita para a Casa Branca (então sede do Parlamento russo) para impedir os amotinados. Coloca-se no meio da multidão, de pé em cima de um blindado, e ali faz um discurso inspirado.

Paralisados por essa aparição, os agitadores se dispersam. Dois dias depois, os chefes golpistas fogem. Gorbachev é libertado e volta a Moscou. Mas está politicamente morto. A URSS agoniza. Em 25 de dezembro de 1991, não existe mais oficialmente. Yeltsin se vê assim, automaticamente, na chefia de um novo Estado poderoso: a Rússia. Sua ascensão é digna do início da epopéia napoleônica. Mas a continuação será menos resplandecente.

Não é um país que ele governa, é um caos onde tenta, bem ou mal , instilar um pouco de ordem e bom senso, com pouco sucesso. Um de seus primeiros atos é criar a Comunidade dos Estados Independentes (CEI), que, uma vez extinta a URSS, ele tenta anexar o que restou dela, juntando à Rússia alguns dos antigos territórios tornados independentes, como Bielo-Rússia, Ucrânia, etc.

Em seguida Yeltsin se propõe a desmantelar o sinistro sistema econômico estatal criado por Lenin e Stalin. O capitalismo se precipita como uma torrente nos interstícios carcomidos da velha economia de funcionários públicos da URSS.

É um espetáculo fascinante: um exército de novos capitalistas formiga sobre o corpo potente mas desmembrado do antigo Estado soviético. Cada um consegue um pedaço do animal abandonado, agarra um poço de petróleo, uma mina, uma indústria. O capital do país é liquidado cegamente sob a forma de 'cupons' comprados a preços irrisórios. A população, que não entende nada dos mecanismos sofisticados da economia liberal, assiste, muda e consternada, a essa briga pelos despojos. Claro que os mais espertos conseguem ficar com a parte melhor.

E assim foi criada essa nova classe social, dos oligarcas, os grandes capitães de indústria, estilo Boris Berezovski ou Roman Abramovich, os magnatas do petróleo contra os quais, hoje, Vladimir Putin empreende uma guerra feroz.

Yeltsin foi o responsável pelo esquartejamento da riqueza russa? Certamente, pois estava no comando. Mas comandava um navio desmantelado e no meio de um ciclone. Todo mundo encheu os bolsos de dinheiro e ele foi o primeiro (possuía dois iates e uma 'villa' na França avaliada em US$ 13 milhões, além das contas em bancos grandiosos). Rumores? Acusações falsas? Em todo o caso, ao transferir o poder para Putin, em 1999, exigiu a promessa de que não seria feita nenhuma investigação sobre os seus bens.

Um outro fato grave pelo qual Yeltsin foi responsável: em 11 de dezembro de 1994, as tropas russas atravessam a fronteira da pequena república da Chechênia, no Cáucaso. Foi a maior operação lançada por Moscou desde a desastrosa intervenção do Afeganistão, em 1979. Por que essa investida? Sem dúvida existe uma inimizade ancestral entre russos e chechenos, qualificados em Moscou de bandidos. Mas Yeltsin, consciente de que seu governo estava à beira do desastre, precisava de uma guerra para provar ao povo que a Rússia ainda era uma superpotência às vésperas das eleições presidenciais. Dez anos depois, Putin continua a ensangüentar o povo checheno.

Essa foi a trajetória de Yeltsin. O percurso de um homem bêbado. Caprichoso como um czar, se enchendo de comida gordurosa, bebendo exageradamente, Yeltsin passa de uma doença para outra. Sofre vários ataques cardíacos em 1995 e 1996. Suas aparições em reuniões internacionais são patéticas e grotescas. Suas doenças o obrigam a delegar seus poderes aos seus primeiros-ministros. Por isso ele tem tantos. Entre março de 1998 e dezembro de 1999 foram cinco: Viktor Chernomyrdin, Serguei Kirienko, Yevgueni Primakov, Serguei Stepachin e, enfim, Vladimir Putin.

Em 31 dezembro de 1999, ele se demite do cargo, por razões de saúde. Seu sucessor, Putin, é o contrário de Yeltsin. Não tem nem o volume, nem os caprichos, as hesitações e as confusões dele. É uma máquina impressionante, formado pela KGB, que, em sete anos, conseguiu recolocar a Rússia entre os 'grandes' do mundo, estruturou a economia abandonada por Yeltsin e impôs o silêncio ao seu povo.

Desde sua aposentadoria, Yeltsin não interferiu mais na política do país. Tentou fazê-lo em setembro de 2004 advertindo seu sucessor contra um recuo da democracia. Uma advertência razoável. Mas, claramente, não aterrorizou Putin. Depois disso, Yeltsin permaneceu em silêncio. Os franceses o viam geralmente nos finais da primavera porque, apaixonado por tênis, assistia ao torneio de Roland Garros, um paquiderme vestido de branco, usando um 'chapéu panamá', como um aposentado da Flórida à vontade na Costa Azul francesa. Até ontem, quando seu coração, tão maltratado pelos excessos, pelo álcool e pelos remédios, acabou cedendo.