Título: Wolfowitz e uma emboscada do Bird
Autor: Rieff, David
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/04/2007, Economia, p. B13

Existe ainda muita coisa que não sabemos sobre o escândalo que tragou Paul D. Wolfowitz, antigo subsecretário da Defesa dos Estados Unidos e atual presidente do Banco Mundial (Bird). Ele está sendo bastante criticado por ter promovido sua companheira, Shaha Ali Riza, com um salário altíssimo. Mas sabemos muito bem que a atual crise é apenas o mais recente episódio de uma guerra já antiga, não só de personalidades, mas também de culturas, que já vem perturbando a instituição antes de Wolfowitz assumir a presidência, em 2005. O Banco Mundial, concebido na Conferência de Bretton Woods em 1944 e criado logo após a SegundaGuerra Mundial, é visto hoje por muitas pessoas especializadas (salvo alguns críticos radicais da extrema esquerda e da extrema direita) como uma instituição essencial. Contudo, mesmo os mais ferrenhos defensores do banco admitem que, em muitos aspectos, é também uma instituição muito peculiar. Em especial, sua administração parece estar radicalmente em desacordo com sua missão. Essa missão, acima de tudo, é aliviar a pobreza e encorajar o desenvolvimento nas regiões mais pobres do mundo. Esses países pobres, porém, têm muito pouco poder de decisão nas operações do banco. Ao contrário, é controlado pelos seus 'acionistas', cujos votos são proporcionais ao montante de dinheiro que fornecem. Em termos práticos, isso significa que Japão, Europa e principalmente os Estados Unidos ainda controlam as políticas da instituição que, como sublinham com freqüência os oponentes da esquerda, são uma repetição do equilíbrio de poder no sistema econômico mundial que dominou o sistema político antes da descolonização que se seguiu à Segunda Guerra. Somando o insulto à injúria, a presidência do Bird tem sido vista desde o seu início como espaço reservado dos Estados Unidos, do mesmo modo que a direção do Fundo Monetário Internacional é reservada a um europeu. Na verdade, todos os outros não precisam se candidatar. Entre os ex-presidentes do Bird estão o proprietário do Washington Post, Eugene Meyer, e o secretário da Defesa na era do Vietnã, Robert McNamara. A equipe de funcionários do banco, no entanto, é formada por pessoas de todo o mundo. Sociologicamente, seria comparável ao grupo de funcionários das Nações Unidas ou do Fundo Monetário Internacional. O mínimo que pode ser dito sobre eles é que todos têm suspeitas quanto aos motivos dos Estados Unidos e uma opinião cada vez mais negativa sobre esse país e que, segundo pesquisas, também predomina na maior parte do mundo (especialmente entre as elites). A decisão do governo Bush de nomear Wolfowitz, um conhecido neoconservador americano, para suceder ao banqueiro e filantropo James Wolfensohn na presidência, foi considerada dentro do banco como o equivalente a nomear John R. Bolton para embaixador dos Estados Unidos junto às Nações Unidas, ou seja, um desrespeito para com os valores da instituição e uma declaração manifesta de que, como 'única superpotência remanescente', os EUA podem fazer o que desejarem e quando desejarem, não importa o que o resto do mundo pense. O fato de Wolfowitz ser visto amplamente como o arquiteto da guerra do Iraque - e que chegou ao banco cercado por um círculo seleto de pessoas leais a Bush, sem nenhuma experiência em instituições internacionais nem conhecimento especializado sobre desenvolvimento - só poderia gerar oposição. Wolfensohn também chegou ao banco com um programa reformista. Mas, ao contrário de Wolfowitz, não tinha em sua bagagem nada como a guerra do Iraque. Também não trouxe sua própria equipe de assessores desqualificados, nem lhes deu poderes de decisão extraordinários. A permanência de Wolfensohn no cargo não foi sem controvérsias e ele certamente tinha seus críticos dentro do banco, com quem entrou em choque ao tratar de temas como a ênfase a dar aos direitos humanos ou a criação de uma sociedade civil em países em desenvolvimento. Mas Wolfensohn nunca se defrontou com o que Wolfowitz precisou enfrentar desde os primeiros momentos do seu mandato - uma equipe em situação perpétua de um quase motim. Mesmo se Wolfowitz tivesse talentos consideravelmente maiores para a conciliação e a administração - suas falhas administrativas eram plenamente conhecidas da administração Bush - ele teria um período difícil, se não impossível, para converter os funcionários do banco. Existe um adágio curioso em psicanálise que é o seguinte: 'Quando a pessoa certa faz a coisa errada, ela é certa; quando a pessoa errada faz a coisa certa, ela é errada'. Num certo sentido, apesar de toda a dissonância e do seu desprezo arrogante pelas sensibilidades da equipe de funcionários permanente do banco, Wolfowitz exemplifica a verdade daquele adágio. O fato é que seu foco na África e sua determinação em colocar a campanha anticorrupção no centro dos trabalhos do banco são prioridades eminentemente defensáveis. O problema de assumir uma atitude de superioridade com relação à corrupção no mundo em desenvolvimento é que você mesmo precisa ser alguém irrepreensível. Com sede em Washington e um grupo de funcionários que recebem salários altíssimos, o Bird sempre precisou combater a percepção de que seus funcionários escrevem memorandos duros para os países pobres tratando de disciplina fiscal, e depois saem para almoços caríssimos. Ao ter supostamente manobrado para aumentar o salário da sua companheira, Wolfowitz fez mais do que qualquer outro na história do banco para confirmar aquela percepção. Com isso, causou um grande dano para a instituição, do qual ela não vai se recuperar enquanto ele não deixar o cargo. A tragédia de Wolfowitz é que muitas pessoas no banco já estavam tentando encontrar motivos para atacá-lo. Mas não esperavam que ele próprio lhes desse o revólver carregado para que o ataque fosse consumado.