Título: Lance ousado a favor de Doha
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Fonte: O Estado de São Paulo, 02/05/2007, Notas e Informações, p. A3
Americanos e europeus têm uma nova deixa para retomar seriamente as negociações comerciais, se quiserem de fato concluir neste ano a Rodada Doha. As conversações para valer foram interrompidas em julho do ano passado, por causa do impasse em torno do comércio agrícola. A partir daí, os negociadores de maior peso reuniram-se uma porção de vezes, mas só conseguiram marcar novos encontros e falar sobre as condições necessárias para o reinício da rodada. A boa novidade, nesta semana, foi a carta enviada aos 150 governos envolvidos pelo presidente do Comitê de Agricultura da Rodada Doha, o neozelandês Crawford Falconer. São 23 páginas de propostas e comentários, precedidas de uma introdução, em tom pessoal, de página e meia. A iniciativa é apresentada, na primeira linha, como um desafio aos diplomatas. ¿Chegou a hora de falar com franqueza¿, escreveu Crawford, para facilitar as decisões de que todos agora precisam ¿desesperadamente¿.
A divulgação da carta no site da OMC é uma atitude incomum. Presidentes de comissões têm como função coordenar os debates, atuar como mediadores, conversar com todas as partes, buscar fórmulas de consenso e propor esboços de acordos. Esse trabalho é realizado, quase sempre, de forma reservada, e o público geralmente só conhece as propostas, em sua forma oficial, quando amadurecidas em conversações com os blocos e países mais influentes. Falconer preferiu um lance mais audacioso.
O texto divulgado na segunda-feira trata em profundidade algumas questões de importância central. Um novo documento foi prometido para dentro de uma semana e um esboço de acordo sobre agricultura será elaborado em seguida. Mas o que foi oferecido aos negociadores, nesse primeiro lance, já pode balizar uma discussão sobre temas substantivos.
Crawford trata em primeiro lugar dos subsídios internos pagos pelo Tesouro aos agricultores americanos. ¿É francamente inconcebível que os EUA, no fim desta negociação, estejam autorizados a gastar em subsídios internos que distorcem o comércio mais do que podiam gastar no começo¿, escreve Crawford. Pela proposta americana, Washington poderá conceder subsídios internos de até US$ 22 bilhões por ano, US$ 3 bilhões a mais do que havia sido permitido pelo acordo da Rodada Uruguai, concluída em 1994.
A resposta aceitável deve estar em algum ponto abaixo dos US$ 19 bilhões e acima dos pouco mais de US$ 10 bilhões propostos pelo Brasil e por outros membros do Grupo dos 20, segundo Crawford. O embaixador brasileiro na OMC, Clodoaldo Hugueney, comentou que um limite pouco abaixo de US$ 19 bilhões será inaceitável, porque isso ainda permitirá um grande volume de subsídios causadores de distorções. Segundo ele, é preciso fixar o teto em US$ 12 bilhões. Mas Crawford não indicou um número. Apenas tentou limitar o espaço da negociação. É uma forma de repor a bola em jogo.
Acesso a mercado é o grande tema, quando se trata da União Européia. Os europeus têm defendido uma redução de tarifas de importação de apenas 39%. Os americanos propõem 66% e o Brasil tem cobrado 54%. Crawford aponta como exeqüível um corte geral ¿acima de 50%¿, que ficaria muito próximo da pretensão brasileira.
Ele propõe também uma solução intermediária para a lista de ¿produtos sensíveis¿ que os governos do mundo rico desejam estabelecer. Esse é um tema especialmente perigoso, porque uma lista muito extensa pode incluir todos ou quase todos os produtos de interesse especial para os exportadores brasileiros e de outros países competitivos em agricultura. As propostas atuais variam entre 1% e 15% das linhas tarifárias. Crawford propõe algo entre 1% e 5%. Isso ainda não resolve o problema, que é tecnicamente complexo, mas limita consideravelmente o campo da discussão. ¿Se não ganharmos um sério impulso nas próximas semanas (hesito em dizer meses), ou fracassaremos ou poremos todo este exercício no congelador por um tempo considerável, até que uma geração melhor que a nossa possa descongelá-lo¿, advertiu Crawford. É um risco nada desprezível.