Título: Caça-níqueis dos pobres
Autor: Macedo, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/04/2007, Espaço Aberto, p. A2

A Operação Furacão, da Polícia Federal (PF), contra a exploração ilegal de máquinas caça-níqueis, impressiona pelo alcance e pela escala. Na hierarquia jurídica e policial, levou à prisão de policiais, delegados, juízes e desembargadores. Na do jogo, à detenção de figuras de alto coturno, como os dois bicheiros cariocas Aniz Abraão e capitão Guimarães, famosos também no mundo das escolas de samba.

Quanto ao material apreendido, R$ 10 milhões em dinheiro vivo, R$ 5 milhões em cheques e perto de R$ 700 mil em moeda estrangeira, além de 51 carros de luxo avaliados em R$ 10 milhões. E deve ser apenas uma pequena amostra do que rola de dinheiro na cúpula dessa atividade, inclusive porque a operação não alcançou São Paulo, onde o bar e a padaria da esquina agora rimam com jogatina.

Quanto às máquinas em operação, não sei de estimativa do seu total, mas deve ser um número imenso. Apenas numa operação em São Paulo, na segunda-feira, num único local, a polícia estadual apreendeu 7 mil caça-níqueis em preparo para desova no mercado. Ontem foi noticiada a apreensão de 1.133 máquinas.

Como informou este jornal na terça-feira, a ilegalidade ocorre porque ¿está em vigor¿ medida provisória de 2004 que proíbe, em todo o território nacional, a ¿exploração de jogos de bingo e jogos em máquinas eletrônicas, denominadas caça-níqueis¿. E há também uma lei estadual, ¿em vigor¿ desde 3 de janeiro deste ano, com proibição na mesma linha, mas ainda pendente de regulamentação.

Em torno da legislação federal surgiu uma indústria de liminares outorgadas com base nos mais variados motivos, como a falta de urgência que justificasse a referida medida provisória, embora sem ponderar o risco de discutir previamente uma legislação desse tipo no Congresso, com toda a influência política que vem do setor.

Outro argumento - acolhido por uma juíza e citado na mesma matéria, além de freqüentemente repetido pelos empresários do ramo - é o de que ele gera empregos. Pondero novamente que essa criação de empregos esconde a destruição de outros, pois o dinheiro gasto no jogo deixa de fluir para outras atividades, onde cai o emprego. O ramo também busca sustentação em pareceres de advogados famosos, mas nesse mercado não seria difícil buscar opiniões em contrário.

Assim, há o contraste entre a legislação ¿em vigor¿ e os muitos bingos e milhares de caça-níqueis em funcionamento. Não sou do ramo jurídico, mas arrisco-me a dizer que há espaço para uma súmula vinculante, seja sustentando a legislação existente, seja para que o governo a reformule para estabelecer a proibição de forma definitiva, pois ela se justifica por várias razões.

A principal é o caráter deletério do jogo, não só sob o aspecto social, mas também pelo lado institucional. O jogo descontrolado é uma atividade com alta propensão à corrupção, inclusive de autoridades, conforme essa operação da PF mais uma vez deixou patente. Pelo lado social, esse aspecto deletério é particularmente forte numa sociedade com as características da brasileira, pois não estamos falando na clientela de Monte Carlo nem na de Las Vegas.

Nessa linha, chamo a atenção para um aspecto não abordado pelas reportagens. O que elas revelam é uma enormidade de dinheiro e veículos de luxo apreendidos, que são apenas a ponta de um enorme iceberg alimentado por uma desastrosa distribuição de renda de pobres para ricos.

O material apreendido evidencia o enorme contraste entre a riqueza de quem banca o jogo e a pobreza dos jogadores, pois, neste caso dos caça-níqueis, basta andar pelas ruas e observar que quem joga é gente pobre apostando um dinheirinho aqui, outro acolá, na esperança de algum ganho. Mas, na média das apostas, o que vem mesmo são perdas que levam aos enormes ganhos de quem banca o jogo. Segundo estimativa publicada na mesma reportagem deste jornal, de cada real apostado, cinqüenta centavos são irremediavelmente perdidos. Temo que seja pior do que isso, pois as máquinas são programáveis. Quanto aos bingos, parece-me que a redistribuição opera mais da classe média baixa para cima.

E mais: o uso dos caça-níqueis é tão amplo e pulverizado que é impossível fiscalizá-lo, seja examinando a programação das máquinas, seja cobrando impostos dos que bancam o jogo. Daí surgem enormes massas de dinheiro frio, que acabam por aquecer os bolsos de autoridades que, na linguagem dos economistas, sucumbem a ofertas que alcançam ou superam seus preços de referência.

Não cabe, contudo, a proibição generalizada. Jogos como bingos, caça-níqueis e carteado deveriam ser confinados em determinadas cidades, em cassinos cujo porte e localização permitissem o controle do dinheiro e dos impostos não só de quem banca, mas também de quem recebe prêmios. No Brasil, já há um caso óbvio para permitir esses locais, que são as estâncias hidrominerais, que, no passado, já tiveram o jogo confinado, muitas delas hoje decadentes. Contudo, cheio de dedos, o governo não avança com essa idéia, tampouco coíbe efetivamente a jogatina que leva o dinheiro dos mais pobres.

Soube que, para contornar as dificuldades do uso de dinheiro sob a forma de moedas, há também máquinas caça-notas, que aceitam dinheiro dessa forma por meio de um mecanismo chamado ¿noteiro¿, que, inclusive, testa se são falsas ou não. Ou seja, tudo é facilitado para tirar o dinheiro do povão, iludido com a promessa de ganhos fáceis.

A operação merece cumprimentos. Só espero que não faça jus ao nome, pois furacões são passageiros e ocorrem em lugares isolados. O problema carece mesmo é de soluções definitivas e de alcance nacional.