Título: Medindo a safra brasileira
Autor: Jank, Marcos Sawaya e Pessôa, André
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/04/2007, Espaço Aberto, p. A2

Do alto de sua experiência e invejável lucidez nonagenária, o engenheiro agrônomo Fernando Penteado Cardoso, presidente da Fundação Agricultura Sustentável (Agrisus), costuma dizer que somos um país em que as pessoas ¿acham muito, observam pouco e não medem praticamente nada¿. Exemplos flagrantes são o tamanho da economia informal, o custo da sonegação, as perdas nas colheitas e o tamanho real da produção agropecuária.

Pelo quarto ano consecutivo, dez empresas e instituições apoiaram a Agroconsult na realização do Rally da Safra, a maior expedição técnica de avaliação da safra de grãos do País. Durante quatro semanas, 91 técnicos percorreram 29 mil quilômetros em 13 Estados, visitando 109 pólos de produção agrícola e colhendo amostras de mais de mil lavouras de soja, milho e algodão. No percurso, foram realizados 37 eventos com a participação de mais de 3,5 mil produtores.

O levantamento quantitativo do Rally da Safra constatou que em 2007 o Brasil vai colher a maior safra de grãos de sua história - 134 milhões de toneladas -, graças ao clima favorável, aos fortes ganhos de produtividade e à melhoria dos preços internacionais. A soja deve atingir 58,4 milhões de toneladas, 12% a mais que no ano passado, sobre uma área 6,4% menor. O milho deve alcançar o recorde de 52,2 milhões de toneladas, 18% a mais que em 2006, numa área apenas 2,2% superior. Observou-se, ainda, um plantio recorde de milho safrinha (plantado no mesmo ano agrícola, após a colheita da soja de verão): 4,3 milhões de hectares produzirão 14,6 milhões de toneladas do produto, 30% a mais que em 2006. Junto com os ganhos do plantio direto, o cultivo de uma segunda safra de grãos no mesmo ano, sem irrigação, é um dos diferenciais que hoje tornam o Brasil líder mundial em eficiência agropecuária.

Outra constatação da viagem foi o rápido avanço da cana-de-açúcar no Centro-Oeste e no Triângulo Mineiro, o que marca o início de um novo ciclo de intensificação do uso da terra, provavelmente de magnitude semelhante ao observado nos anos 70. Tudo indica que está se formando um tripé de disputa pelo uso da terra entre a cana-de-açúcar, o sistema integrado de produção de soja/milho e as pecuárias de corte/leite. O valor oferecido para arrendamento de terras pelas novas usinas de cana vai eliminar os últimos bolsões de ineficiência agropecuária em grandes, médias e pequenas propriedades rurais, gerando pouco a pouco o sistema mais eficiente de produção integrada de alimentos, rações e energia do planeta.

O resultado deste ano merece comemoração, pois os produtores brasileiros seguem dando mostras inequívocas de sua competência técnica e capacidade de resistir às constantes adversidades, como a taxa de câmbio valorizada, a infra-estrutura e o aumento do custo dos derivados de petróleo. Outro fato relevante é a constatação de que tem aumentado o número de produtores que estão utilizando mecanismos modernos de proteção contra a flutuação de preços, como os contratos futuros e de derivativos. Mesmo no milho, houve forte avanço da ¿comercialização responsável¿.

Porém o levantamento qualitativo realizado com os produtores nesta jornada pelo interior do País aponta um quadro bem menos festivo nos vetores que cercam o desempenho da produção agropecuária. O sentimento dos produtores misturava a angústia com o passado recente de fortes prejuízos e acúmulo de dívidas, o alívio pela farta colheita e bons preços e a preocupação com um futuro incerto por conta dos custos novamente em alta, a logística deplorável e o câmbio cada vez mais valorizado. Além disso, quando se mergulha de corpo e alma no Brasil profundo, se percebem algumas das novas mazelas contemporâneas da agricultura. Merecem destaque:

O aumento expressivo da criminalidade no campo, com roubos de cargas (especialmente defensivos agrícolas), de máquinas agrícolas e de carros de serviço, assaltos às fazendas e nas estradas. Os produtores e trabalhadores rurais já vivem hoje o mesmo grau de insegurança que marca o cotidiano dos cidadãos das grandes metrópoles! Vale lembrar que esta nova forma de criminalidade se soma ao intolerável desrespeito de direitos de propriedade das invasões ilegais de terra produtivas.

A dificuldade que os produtores dos cerrados produtivos do Nordeste têm enfrentado para contratar funcionários que queiram trabalhar com carteira assinada, pois a maioria dos trabalhadores locais disponíveis teme perder os benefícios do Programa Bolsa-Família, numa chocante inversão de objetivos e valores da política social. Onde vai parar a tão esperada geração de empregos e o aumento da produtividade do País, se milhares de cidadãos estão sendo seduzidos por políticas assistencialistas que estimulam a ociosidade?

A dramática e vergonhosa deterioração das estradas, com conseqüente elevação dos fretes nos caminhos por onde é escoada a safra agrícola.

Até quando vamos adiar os investimentos em infra-estrutura de armazenagem e transporte de produtos agropecuários? Até onde vamos deixar crescer a nova onda de criminalidade no meio rural? Até quando o atual ciclo de alta de preços das commodities conseguirá atenuar a valorização cambial? Quando vamos aprender a substituir ¿paternalismo¿ por ¿produtividade¿?

O sucesso mundial do agronegócio brasileiro depende de um conjunto muito pequeno de políticas públicas que, infelizmente, escapam do controle dos agricultores: infra-estrutura, defesa sanitária, segurança e respeito aos diretos de propriedade. Não é pedir muito. Basta o governo reorientar os enormes desperdícios de recursos públicos do setor por aquilo que em economia se convenciona chamar de ¿geração de bens públicos¿.