Título: Sobre o 'abril vermelho'
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Fonte: O Estado de São Paulo, 18/04/2007, Notas e Informações, p. A3

Há que se dizer, inicialmente, que o relacionamento do Movimento dos Sem-Terra (MST) com o governo Lula é de uma contradição das mais emblemáticas, a sintetizar, com a maior ênfase, o que chega a ser um traço até misterioso da imagem do presidente 'amigo dos ricos e pai dos pobres', como tão bem já definiu um brasilianista: quanto mais erra, mais prestigiado se torna, quanto mais deveria se desgastar (junto com seu governo), mais é aceito pela grande maioria da população (junto com seu governo). Quanto mais o MST e assemelhados, desde o início do governo Lula, têm radicalizado suas ações em desafio ao Poder de Estado, mais apoio (inclusive financeiro) encontram nas instituições governamentais.

Quanto mais os emessetistas e coligados criticam o programa governamental de reforma agrária (no que têm pesadas cargas de razão), mais seus líderes e militantes dão pleno apoio, como fiéis cabos eleitorais, a Luiz Inácio Lula da Silva. E não nos esqueçamos de que o MST e movimentos assemelhados, desde o primeiro momento do primeiro mandato do presidente Lula, passaram a comandar os cargos mais estratégicos para a execução da política fundiária, tal o caso de todas as superintendências do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Trata-se, no fundo, de uma relação ódio/amor que talvez necessite de um politólogo freudiano para explicar melhor.

Como é notório, as ações do MST - e assemelhados - de desafio à lei, à ordem pública, aos Poderes de Estado e, sobretudo, aos direitos da pessoa (como o da propriedade, o da produção, o da livre locomoção e até o da integridade física) têm se manifestado, entre outras operações, no esbulho possessório, na invasão de fazendas (especialmente as produtivas), na derrubada de cercas, na depredação de sedes, na matança de animais, na colocação de empregados rurais em cárcere privado, na ocupação de estradas, nos saques a caminhões e a supermercados, no saque e depredação de cabines de pedágio, na destruição de laboratórios de experimentação genética e aperfeiçoamento de sementes, fruto de longos anos de trabalho (predação essa em costumeira parceria com sua parceira transnacional Via Campesina), e violências semelhantes.

Agora, sob o pretexto de 'comemorar' os 11 anos do 'massacre de Eldorado dos Carajás' e (de novo) para denunciar a lentidão com que o governo Lula desenvolve seu programa de reforma agrária, o MST intensificou a ofensiva de invasões e manifestações em 10 Estados, fazendo valer o marco mercadológico que já fixou, sob a expressão 'abril vermelho'. Mas, além das invasões, dos atos públicos e das marchas desenvolvidas em diferente regiões, o MST precisava de algo mais marcante, que chamasse mais a atenção do noticiário para a mobilização pretendida. Então, realizou a arrojada operação de invasão, levada a efeito por 800 militantes, da sede do Incra, em Brasília. Ou seja, escolheu o locus simbólico do programa nacional de reforma agrária, na sede de sua instituição condutora, na capital da República.

Nessa ocupação os emessetistas tomaram 9 dos 23 andares do prédio para reivindicar o assentamento de 1.800 famílias que estavam acampadas no entorno do Distrito Federal e para exigir algo muito mais importante, em termos de sua demonstração de força, perante o governo Lula: a exoneração do superintendente regional do instituto, Renato Lordello. E esses militantes do MST, acompanhados de seus colegas da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e do Movimento de Apoio ao Trabalhador Rural (MATR), só concordaram em deixar o local após serem recebidos pelo presidente do Incra, Rolf Hackbart, que prometeu a definição do governo, dentro de dez dias, sobre 'a ocupação do segundo escalão' (escapando de ter que dizer se Lordello seria demitido ou não).

Deixando-se de lado quaisquer considerações de mérito sobre as reivindicações dos sem-terra, certo e sacramentado ficou que a forma mais rápida de chegar- se à negociação com esse governo é, para ser sucinto, desrespeitando-o.