Título: Uma chance para os EUA refletirem sobre a violência
Autor: Lapouge, Gilles
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/04/2007, Internacional, p. A12

O presidente George Bush, ao saber do massacre ocorrido na Virgínia, disse que estava 'horrorizado'. Muito bem! É por meio de comentários desse nível que se mede a envergadura de um homem de Estado. No entanto, o 'horror' na universidade deveria oferecer uma oportunidade para os americanos se olharem nesse espelho tenebroso e se interrogarem sobre a violência que satura a sua sociedade e a sua história.

Esses ímpetos mortais são explicados freqüentemente pela 'cultura da pradaria' que admiramos nos filmes de cowboy e da qual Bush, natural do Texas, está impregnado. No entanto é preciso deixar claro que esse fascínio pela arma de fogo é anterior à grande marcha pioneira para o Oeste. Está inscrito no 'gene' da nação americana, ou seja, na Constituição adotada em 1787, após a guerra de independência contra os ingleses.

Assim, o massacre na Virginia se insere numa seqüência arcaica e sucessiva de fatos: a Constituição de 1787, a epopéia romântico-econômica dos 'cowboys' e da 'Grande Pradaria' e, por fim, os massacres de alunos que se sucedem com a regularidade de um relógio depois da cena inaugural, em maio de 1927, quando um homem fez explodir uma escola em Bath, no Michigan, matando 40 adolescentes.

Parece absurdo pensar que essa mesma infâmia se repita de geração em geração, como se fosse o resultado de uma contaminação, e a carnificina de 60 anos atrás continua se reproduzindo como se por efeito de um imã. No entanto, como negar que determinados delitos arcaicos se reproduzem de geração em geração?

Toda a pregação cristã repousa no 'pecado original'. Não existiriam também 'crimes originais'? Por exemplo, é preocupante saber que os suicídios dos camicases que diariamente ensangüentam as cidades do Iraque são reflexo de um gesto milenar, o 'assassinato sagrado' praticado no século 12, na montanha de Alamut, na Pérsia, pela seita mística dos 'Hassasins' (que deu origem à palavra 'assassino'). Poderíamos invocar também os suicídios ou assassinatos que se reproduzem de geração em geração, tanto nos dramas de Shakespeare, ou na família maldita dos Atrides, na Grécia.

Numa análise mais pragmática, o massacre ocorrido na Virgínia levanta mais uma vez a questão da venda livre de armas nos EUA. O número estimado de armas de fogo na América é de 192 milhões. E até agora, apesar desses massacres reiterados, raras são as figuras públicas que fazem alusão a isso. O presidente Bush declarou estar 'horrorizado' mas não disse uma palavra sobre essas armas que podem ser encontradas nos mínimos interstícios da sociedade americana. Por exemplo, a cidade da Filadélfia registrou 410 mortes em 2006 - tanto quanto a França inteira.

É fato que Bush é um típico representante dessa cultura da arma de fogo. Mas os democratas são quase tão indiferentes quanto os republicanos. Em 1994, Bill Clinton ousou proibir o comércio de fuzis de assalto. Mas, na última campanha presidencial, o candidato democrata John Kerry não quis assumir posição em favor de um enquadramento mais sério das armas de fogo.

A timidez democrata é explicada talvez pelo atavismo americano e pelo fetichismo das armas que contaminam o país. É preciso também levar em conta o papel da NRA (sigla em inglês da Associação Nacional do Rifle), o mais poderoso lobby dos EUA, que, nas eleições presidenciais de 2004, gastou US$ 400 mil por semana em campanha contra Kerry.

Um dos argumentos do lobby das armas é este: se a sua venda para os cidadãos for proibida, eles estarão desarmados enquanto que os gângsteres, os criminosos e os terroristas continuarão mantendo o arsenal que já possuem e que podem renovar à vontade. Em suma, seria entregar a pureza dos 'bons' à loucura dos 'perversos'. A Associação Nacional do Rifle declarou ontem, triunfalmente, que o massacre da Virgínia justificava a venda livre de armas para que a população pudesse se proteger contra os 'predadores'. Tal argumento tem base? Difícil dar uma resposta decisiva no caso. O mínimo que se pode desejar é que um debate nacional aborde essa questão com seriedade.