Título: A oportunidade da reforma tributária
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/04/2007, Espaço Aberto, p. A2
Desde a reunião do presidente Lula com os governadores se discute, mais uma vez, a possibilidade de uma reforma tributária. Ninguém duvida de que um desenho mais racional do sistema federativo de impostos - sobretudo com a eliminação de impostos indiretos e contribuições cumulativas - traria ganhos permanentes para a alocação de investimentos no País. Do que muitos duvidam é que se consigam superar os velhos conflitos de interesses entre União e Estados, para não falar de outros fora desta discussão federativa. Mas pode ser que, desta vez, algo diferente ocorra.
O que está em discussão é um exemplo clássico da Teoria dos Jogos: há um estado de equilíbrio em que os jogadores sabem que há uma perda de valor não capturada pelo sistema; todos sabem que há um novo possível equilíbrio com ganho adicional. No entanto, a incerteza sobre a dinâmica da transição leva os jogadores a não se moverem da posição inicial. Então, o que teríamos de novo, agora, para que governo federal e Estados chegassem a um acordo sobre uma reforma tributária? Basicamente quatro condições: 1) Maior convergência de opiniões sobre a necessidade da reforma; 2) a nova tecnologia da nota eletrônica; 3) condições macroeconômicas mais favoráveis para o governo federal aportar recursos aos Estados; e 4) esgotamento da capacidade dos Estados de financiarem a guerra fiscal. Vejamos cada uma destas condições.
A primeira é a simples constatação de que não há mais voz dissonante que conteste os ganhos de uma reforma tributária que dê mais racionalidade ao sistema brasileiro, eliminando o excesso de tributos e distorções, como a cumulatividade de impostos e as alterações de incentivos entre os Estados. Qualquer estudo sério de econometria ou microeconomia pura pode mostrar os fortes impactos positivos sobre a taxa de investimento agregada no País que seriam decorrentes de uma reforma que eliminasse as principais distorções alocativas do sistema tributário brasileiro.
A segunda condição é fundamental para diminuir a incerteza relacionada à forma de aferição de ganhos e perdas decorrentes da fase de transição numa reforma tributária, especialmente se tivermos uma mudança no sistema de cobrança do ICMS da origem para o destino, durante uma eventual migração para um único imposto sobre o valor agregado (IVA). Apesar de a mudança da cobrança para o destino ser um jogo de soma zero (já que o saldo líquido da balança de pagamentos entre os Estados é zero), haverá inicialmente Estados perdedores e ganhadores. Para superar este impasse a primeira tarefa é definir de forma mais precisa quem perde e quem ganha. Neste momento, entra a importância da nota eletrônica. Hoje, já podemos contar com sistemas de introdução da nota eletrônica, que, se implantada sob um único sistema para todo o País, poderia trazer alto grau de confiabilidade às estimativas de ganhos e perdas na troca de um sistema de tributação. Além disso, a expansão do sistema reduziria as possibilidades de sonegação e fraude na arrecadação, gerando ganho adicional de eficiência, que poderia ser repartido por todos.
O terceiro ponto é a condição que permite ao governo federal compensar os Estados por eventuais perdas, sem que isso signifique piora no desempenho fiscal do setor público consolidado. O crescimento acentuado da participação da União no bolo tributário nacional nos últimos anos e a combinação de superávits primários consistentes com uma trajetória futura descendente da relação dívida-PIB podem permitir que a União aproveite a reforma tributária para reconstruir uma distribuição mais harmônica de receitas. A transferência de parte das receitas da União, especialmente contribuições, poderia ser perfeitamente compatível com as atuais metas fiscais, já que a maioria dos novos governos estaduais está empenhada em melhorar a gestão fiscal. Como o próprio Ministério da Fazenda vem anunciando a disposição de compartilhar parte de seus recursos no âmbito de uma reforma tributária, este cenário já não parece tão improvável como no passado, quando o governo federal nem sequer aceitava discutir a questão. O importante é que esta disposição não se transforme numa manobra para garantir apoio a futuras votações de interesse da União, como a renovação da CPMF.
O quarto ponto reflete também uma nova condição: os Estados não apresentam a capacidade de renúncia fiscal que mantiverem nas últimas décadas. Desta forma, a mudança de um sistema de cobrança da origem para o destino poderia amenizar a pressão por incentivos fiscais sobre seus Tesouros. Ainda que possa haver um sistema inicial híbrido, com uma alíquota maior para o destino e outra menor para a origem, este novo sistema certamente poderia significar redução no conjunto de desonerações fiscais que o próprio Ministério da Fazenda já estima ultrapassar os R$ 25 bilhões por ano. E para os que acham que este resultado é bom para o investimento agregado no País, deve-se observar o imenso grau de incerteza que as alterações freqüentes de incentivos geram sobre decisões de alocação espacial do investimento nos Estados. Podemos, inclusive, ter uma carga tributária nacional menor se conseguirmos disciplinar o anárquico sistema atual de concessão de incentivos.
As quatro condições não expressam um otimismo ingênuo sobre as chances de um reforma abrangente. A negociação entre União e Estados continua a ser uma missão tão difícil quanto necessária. Por outro lado, em nenhuma das últimas tentativas de reformar nosso caótico sistema tributário estiveram presentes condições tão favoráveis como agora. Esta é uma chance que pode ser única e que vale muito para o País. Um pouco de boa vontade e de boa-fé pode fazer toda a diferença entre darmos um grande passo ou ficarmos parados mais uma vez.