Título: No Brasil, regra existe para ser mudada
Autor: Manzano Filho, Gabriel
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/04/2007, Nacional, p. A8

Ao batalharem pelo fim da reeleição e por cinco anos de mandato presidencial, os políticos brasileiros provam mais uma vez que, no Brasil, as regras existem para serem mudadas. Não bastassem, nas últimas seis décadas, um suicídio (Getúlio Vargas, 1954), uma renúncia (Jânio Quadros, 1961), um golpe militar (contra João Goulart, 1964) e um impeachment (de Fernando Collor, 1992), que quebraram completamente o ritmo dos mandatos presidenciais, o mundo político atravessou o jogo cinco vezes, nesse mesmo período, para alterar a duração dos governos.

Seria ótimo se essa obsessão por mexer nas regras se limitasse ao tempo de poder dos governantes. A mania foi mais longe. Eleição indireta, sublegendas, senadores biônicos, Lei Falcão, cláusula de barreira, verticalização, showmícios, réplicas e silêncios na TV foram invenções que, na hora errada ou por motivos errados, se incorporaram à rotina eleitoral. Na maioria dos casos, para serem logo alteradas ou eliminadas.

'Essa situação gera uma instabilidade que põe em risco a segurança jurídica dos cidadãos e da sociedade como um todo', adverte o advogado Tito Costa, estudioso da política brasileira há cinco décadas. E essa fúria por mudança deixou vítimas pelo caminho, diz outro advogado, Ricardo Penteado. 'O País queimou a idéia do parlamentarismo na crise de 1961, recorrendo a ele apressadamente quando Jânio renunciou', lembra Penteado, que presta serviços ao PSDB. 'E depois a queimou de novo no plebiscito de 1993.'

Faz sentido perguntar, principalmente a petistas e tucanos interessados em matar a reeleição, quanto vai durar a mudança agora pretendida. Esse vaivém do mandato presidencial começou em 1946, quando a nova Constituição determinou mandato de cinco anos sem reeleição. A regra sobreviveu por três décadas - ignorada em momentos de crise, mas não substituída - e só foi extinta em 1979, quando o último general da ditadura, João Figueiredo, recebeu um mandato de seis anos.

A nova fórmula foi embora com o mesmo Figueiredo, pela porta lateral do palácio, em 1985. Era o fim do regime militar e os civis reimplantaram o mandato de cinco anos, que também só valeram para José Sarney, uma vez que a Constituição de 1988 estabeleceu o prazo de quatro anos sem reeleição. Eles só valeriam, porém, depois do governo de seu sucessor, Fernando Collor, completado por Itamar Franco até o fim de 1994.

A quinta alteração coube a Fernando Henrique Cardoso, que providenciou a reeleição em 1997, com a emenda constitucional nº 16. Ficou no poder oito anos, prazo que está valendo também para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Tantas mudanças tinham, ao fundo, uma regra imutável e que os políticos sempre cumpriram à risca: a de que as leis são criadas para preservar o poder e enfraquecer o adversário. Ela valeu tanto para os generais, nos seus 21 anos de poder (de 1964 a 1985), quanto para os civis, nos 22 anos seguintes.

Assim, a ditadura acabou com todos os partidos em 1965, impondo a criação de apenas dois (Arena e MDB) e depois inventou a sublegenda, que permitia a um partido ter vários candidatos para um mesmo cargo e no final somar os votos de todos eles e dá-los ao mais votado. Seguiram-se a Lei Falcão, homenagem ao então ministro da Justiça, Armando Falcão, que impedia o candidato de abrir a boca na campanha, e o Pacote de Abril, que incluiu senadores nomeados (um terço do total) e espremeu a representação dos Estados onde a oposição era forte.

TEMPO DOS CIVIS

Um dia os generais foram embora, mas os civis já estavam tão habituados a mexer nas regras que a Justiça Eleitoral prosseguiu mudando coisas a cada eleição. Prazos de campanha, gastos, doações, prestação de contas e outras rotinas iam sendo aumentados, reduzidos, proibidos e permitidos. 'Chegamos a absurdos como rejeitar contas por causa de uma nota rasurada de R$ 5', diz Tito Costa.

Desde a redemocratização, cerca de 20 textos legais foram aprovados pelo Congresso, além de dezenas de resoluções e portarias - e o resultado foi que o eleitor nunca chegou a entender as regras do jogo. 'Temos vivido um comportamento errático', afirma Ricardo Penteado. 'Nossos políticos precisam lembrar que a democracia não se constrói por decreto, mas por meio de um processo.'

Para interromper esse ciclo cansativo, aprovou-se em 1997 a Lei Eleitoral (nº 9.504), que juntava um emaranhado de normas antigas. Não adiantou. Os próprios tribunais continuaram reinterpretando normas a cada eleição. Ninguém estranha mais quando ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF) divergem, mesmo sobre conceitos essenciais.

Com a invasão da política pelos marqueteiros, as campanhas se transformaram em espetáculos e os comícios, em grandes shows com artistas famosos. A crise do mensalão pôs a nu esses excessos, que foram enquadrados em 2006 pela Lei 11.300. Esta limitou gastos eleitorais, proibiu santinhos, acabou com as cenas externas - candidatos inaugurando obras ou beijando criancinhas - e tirou de cena até o outdoor.

A verticalização e a cláusula de barreira foram cometas que entraram e saíram de cena rapidamente. A primeira chegou em 2002, para proibir que aliados em nível nacional fossem adversários nos Estados. Passada a eleição, foi esvaziada e extinta. A cláusula de barreira deveria estrear em 2006. Tirava do jogo os partidos sem expressão eleitoral. Por causa dela, partidos como Prona, PAN e PHS, entre outros, juntaram-se a siglas maiores para sobreviver. Esforço desnecessário. Semanas depois, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou a cláusula inconstitucional. Certamente, os inconformados descobrirão um jeito de mudar isso.