Título: Balança política cai para a direita
Autor: Lapouge, Gilles
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/04/2007, Internacional, p. A18

A França vota e a Europa observa. E uma parte do mundo também. O jornal Los Angeles Times está agitadíssimo. O New Statestman, de Londres, se entusiasma, pois ¿a França é a nação mais turbulenta da Europa¿. Além disso, o crepúsculo de Jacques Chirac pressagia uma mudança de geração e quase de uma era histórica.

O modelo político francês é uma curiosidade. Sua Constituição (impulsionada por Charles de Gaulle e adotada em 1958) conseguiu a proeza de ser republicana e monarquista. Em 1789, a França fez a sua Grande Revolução. Cortou estupidamente a cabeça do rei Luís XV (o monarca mais gentil de toda sua história). Mas todo mundo sabe o que acontece quando se corta a cabeça de um rei: no momento todos ficam contentes, festejam, dançam e se embriagam. Mas depois, essa cabeça cortada surge sem cessar nos sonhos e o sangue do rei é lembrado eternamente, por remorso ou nostalgia. O sangue da cabeça de um rei não seca nunca.

Esse é o drama da França: sendo uma república, ela tem um primeiro-ministro, ministros, deputados, leis e tudo aquilo que é necessário para ser uma república. Mas, acima dessas vulgaridades plebéias, entre o céu e o bom Deus, a França tem um monarca: o presidente da república. Mais poderoso do que um rei.

O presidente vive num palácio. É mais forte do que a lei. Pode revolver à vontade o caixa e nenhum juiz tem o direito de interrogá-lo. O Parlamento não tem nada a dizer. Se o seu primeiro-ministro deixa de ser-lhe simpático, o presidente o dispensa e escolhe outro. Os ministros, quando falam com ele, curvam-se até o chão. O presidente é o chefe dos exércitos e das armas nucleares. Comanda a política externa como bem entende. O orçamento do governo escapa a qualquer controle. Ele é ¿sagrado¿, como era outrora o corpo do rei. Esse é o homem que o povo francês vai designar e, durante cinco anos, governará o país sem dividi-lo com ninguém. Daí a virulência das paixões, as vilanias e os entusiasmos que cercam esta votação.

Em outros países, o poder é controlado pelo Parlamento, representante de todas as sensibilidades do povo, da esquerda à direita, embora cada partido, mesmo o mais nanico, possa opinar sobre a ação do governo.

Não é o caso da França. Conseqüência: os pequenos partidos só conseguem se fazer ouvir quando ocorre uma eleição presidencial - a cada cinco anos. É isso que explica essa incrível balbúrdia de 12 candidatos que concorrem hoje.

Entre esses candidatos há três trotskistas (a França vai entrar no livro Guinness dos recordes?), um comunista, um ecologista de esquerda, um terceiro-mundista, dois xenófobos (Jean-Marie Le Pen e Philippe de Villiers). Esses candidatos conseguirão (à exceção de Le Pen) uma votação lastimável (entre 1% e 2% cada), mas este é o único momento em que eles têm uma oportunidade para fazer um pouco de barulho. E aproveitam.

Restam os candidatos sérios. São quatro: Nicolas Sarkozy, da direita autoritária (UMP); Ségolène Royal, socialista; François Bayrou (centrista da UDF) e, enfim, Jean-Marie Le Pen (da Frente Nacional, de extrema direita).

Sarkozy é o favorito. É um homem franzino, com um grande nariz sempre palpitante, gênero ¿polichinelo¿, nervoso, inquieto, a fisionomia marcada pelos tiques nervosos. Ele parece estar sempre querendo ajeitar o casaco. Quando sorri, é doloroso. Quando não sorri, também. Anda muito rápido, agitando os ombros. E tem acessos estrondosos de cólera.

Os franceses o conhecem bem. Sarkozy foi ministro do Interior durante três anos. E acha que fez maravilhas no cargo. Sua obsessão é a segurança. Deu a seus policiais ordem para ¿arreganharem os dentes¿. Encheu as prisões. Sarkozy tem horror dos imigrantes. Devolveu para seus países de origem muitos negros e árabes, incluindo crianças que freqüentavam as escolas francesas e vão se reencontrar nos seus desertos de origem. Compaixão não é uma especialidade de Sarkozy.

Esse mau humor contra os imigrantes é curioso. Com efeito, Sarkozy é um francês recente. Seu avô era húngaro (Gyorgi Charkozy) e sua avó judia, talvez turca. ¿Sarkozy vai se reconduzir também à fronteira, na qualidade de húngaro e judeu, ao mesmo tempo?¿, perguntam os maldosos. Le Pen, que detesta mais ainda os imigrantes e ¿caça¿ nos mesmos territórios, denuncia ¿o imigrante Sarkozy¿.

Sarkozy é corajoso, muito inteligente e brilhante. Sem muita cultura, pouco poético, mas competente, eloqüente, conhece os assuntos. Tem o sentido da fórmula que mata. Demagogo, joga com a principal preocupação dos franceses: a insegurança.

Quando, há dois anos, se registraram as grandes revoltas das populações pobres e de imigrantes nas periferias francesas, ele reagiu duramente. Sua violência talvez tenha alimentado o fogo em vez de apagá-lo. Tratou os amotinados de ¿gentalha¿. Nunca foi perdoado pelos moradores das periferias. Mas a burguesia o aplaudiu.

É uma figura atípica, fascinado pelos anglo-saxões, o que é raro neste país. Censurou Chirac por não ter acompanhado George W. Bush na guerra do Iraque. Muito ligado ao grande patronato (seu irmão é um dos líderes), Sarkozy é um vigoroso defensor do liberalismo econômico. Seus modelos são Ronald Reagan e sobretudo Margaret Thatcher e Tony Blair.

Se chegar ao poder, a ¿exceção francesa¿, tanto no plano econômico como no diplomático, deve acabar.

Diante desse pequeno buldôzer, divisamos a socialista Ségolène Royal. Bela, distinta. Bem vestida. Límpida. Ela conseguiu ser indicada pelo Partido Socialista como sua candidata nessas eleições, eliminando as velhas estrelas socialistas: Lionel Jospin, Jack Lang, Laurent Fabius, Dominique Strauss-Kahn. Ségolène passou uma rasteira em todos esses bonachões que permanecem no século 19.

Infelizmente, quando a união dos socialistas a seu redor foi confirmada, Ségolène não mostrou um grande talento: sob o sorriso inevitável, insípido e pretensioso, vimos brotar uma pessoa seca, segura de si mesma, que não suporta ser contrariada. Seus discursos são cansativos.

Sua voz monocórdica e a extensão interminável das suas frases, repletas de adjetivos, diz o jornal grego O Kosmos tou Ependyti, não convêm a um jornal televisivo. Seria necessário sacrificar toda a atualidade internacional para dar tempo para Ségolène terminar uma única de suas frases.

O enfado que ela destila, as bobagens que profere e seu autoritarismo acabaram dando um duplo resultado: de um lado, os outros chefes socialistas a apóiam porque não pode ser de outra maneira, mas o fazem com um certo desdém. Como a corda que sustenta um enforcado. E só esperam uma coisa: que ela tropece.

Segunda conseqüência: muitos eleitores não se identificam com essa ¿burguesa¿ puritana, severa, que se compara a Joana d¿Arc, se enrola na bandeira azul, branca e vermelha e canta a Marselhesa. O que acontece com esses eleitores de esquerda decepcionados com Ségolène? Eles não vão votar em Sarkozy - que, não só é de direita, mas de uma direita autoritária, agressiva, policialesca e tentada pela xenofobia.

Assim, uma parte do eleitorado natural de Ségolène, em vez de votar nela, vai preferir um terceiro candidato: François Bayrou.

François Bayrou é o ¿centro¿. Pertence ao grupo defunto dos democrata-cristãos. Sua idéia é que a luta frontal da ¿direita contra a esquerda¿, uma mania francesa que paralisa o país há décadas, deve ser abandonada. Propõe governar no centro, formar um governo que reagrupe homens da direita e da esquerda, todos comprometidos em tirar a França de suas dificuldades.

Num país tão politizado como a França, tão apaixonado pelas querelas ideológicas, esse apelo a um poder pacífico e ecumênico no início decepcionou. Mas, à medida que aumentavam as bobagens de Ségolène e as ameaças de Sarkozy, uma parte da esquerda passou a olhar com interesse esse estranho Bayrou, propondo deixar para trás a guerra liliputiana de direita contra esquerda.

Assim, partindo de um prognóstico de 5%, Bayrou saltou para 18% nas pesquisas, um pouco menos que Ségolène, com 23%, enquanto que Sarkozy gira em torno de 30%.

Os últimos dias da campanha foram ásperos, muitas vezes indignos. Os inimigos de Sarkozy procuraram demonizá-lo. Especularam sobre o ¿medo¿ que ele, por suas maneiras secas, brutais e como ex-ministro da polícia, provoca num grande número de cidadãos.

Jornais e blogs na internet apresentaram uma infinidade de insanidades sobre Sarkozy, transformando-o num lobo mau, num fascista. É absurdo: a direita que ele encarna é dura. Não fascista.

Rumores infectam a internet. A mulher de Sarkozy, Cecilia, teria abandonado novamente o domicílio conjugal. Um grande semanário, Marianne, publicou um artigo com o título: ¿Sarkozy é louco!¿ Foi um enorme sucesso comercial: 300 mil exemplares vendidos logo que chegou às bancas e depois uma nova tiragem de 100 mil. Neste caso o exagero também foi flagrante: Sarkozy não é completamente louco.

Se alguém está louco não é Sarkozy, mas a França, que tem o hábito de transformar esse ato normal da vida política (uma eleição presidencial) em uma tragédia que, felizmente, como todas as boas tragédias, tem alguns personagens cômicos e muitas passagens extravagantes.

Entre esses personagens barrocos, um deles, que tem grande peso, é o candidato xenófobo e ligeiramente fascista, grande orador, e o mais culto entre todos: o velho Le Pen, chefe da Frente Nacional. No passado, Le Pen foi uma verdadeira ameaça: em 2002, ele bateu o socialista Lionel Jospin no primeiro turno e encarou Chirac no segundo turno.

Este ano, as pesquisas o colocam em quarto lugar, com 13% das intenções de voto. Mas as pesquisas às vezes se enganam. Não se deve negligenciar Le Pen. De todas as maneiras, ele pesa na vida política, na medida que outro homem de direita procura lhe roubar eleitores, rivalizando com ele em matéria de xenofobia.

Assim, a paisagem política, entregue aos exageros das promessas eleitorais, se ¿direitiza¿ cada dia mais: a socialista Ségolène pede emprestados a Sarkozy seus temas de segurança, o nacionalismo e a bandeira azul, branca e vermelha. Sarkozy, por seu lado, empresta de Le Pen sua embriaguez xenófoba e antiimigrantes.

A política francesa parece uma perseguição: Ségolène corre atrás de Sarkozy, que corre atrás de Jean-Marie Le Pen, e todo mundo se atropela para a direita. Depois disso tudo, é espantoso ver do outro lado do tablado três candidatos trotskistas, um ecologista de extrema esquerda e uma comunista que parecem lembranças, como fotografias desbotadas.