Título: Da Lei de Reserva ao BNDES
Autor: Caldas, Suely
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/04/2007, Economia, p. B2

Em texto que produziu no início dos anos 1990, em que comparava as políticas industriais dos países asiáticos com a do Brasil, o economista Luciano Coutinho, futuro presidente do BNDES, cometeu uma grave falha: em nenhum momento mencionou os altíssimos índices de inflação que, no Brasil, chegaram a 80% ao mês, impedindo indústrias de planejar investimentos de médio e longo prazos. Porque corroía diariamente o valor do dinheiro e impossibilitava o mínimo de previsibilidade futura da economia, a inflação levou à desistência numerosos planos de investimentos industriais no Brasil. Um indicador dessa importância jamais poderia ser ignorado por quem se propõe a analisar o que aconteceu com nossa indústria nesse período.

Poucos anos antes, na década de 1980, Luciano Coutinho deixara um legado amargo para os brasileiros: foi o principal mentor da Lei de Reserva de Mercado na área de informática, que causou enorme atraso tecnológico: enquanto o mundo fabricava computadores cada vez mais modernos, velozes, eficientes e baratos, a indústria nacional produzia versões obsoletas e caríssimas, protegida que era pela proibição da importação prevista na lei. Por alguns anos os brasileiros foram obrigados a comprar máquinas nacionais que não funcionavam e viraram sucata quando a Lei de Reserva foi revogada.

Coisas do passado, de um tempo em que dogmas ideológicos se impunham à realidade econômica, economistas nacionalistas - sobretudo os chamados campineiros (da Universidade de Campinas) - rejeitavam a idéia de ver o Brasil inserido na economia global e tratavam a inflação como um detalhe de menor importância. Hoje é muito diferente. Os brasileiros - os mais pobres, sobretudo - abominam a volta da inflação, a globalização tornou-se irreversível e a realidade derrotou os dogmas. O mundo, o Brasil e Luciano Coutinho mudaram.

É claro que as rixas políticas com o neoliberalismo perduram, a rivalidade com o grupo da PUC-RJ não desapareceu, mas os conflitos são mais civilizados, desapaixonados. Muito diferente dos anos 1990, quando o próprio Luciano Coutinho, ironicamente, se autonomeava um jurássico.

Sempre próximo ao poder nos anos 1970/1980, primeiro como assessor do ex-presidente do PMDB Ulysses Guimarães e depois como secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia, Coutinho se viu excluído no governo FHC. No anonimato, começou a estudar as chamadas ¿cadeias produtivas¿, forma que ele considerava moderna para analisar interferências no processo inteiro de transformação industrial de cada setor, da matéria-prima ao produto final. Seu trabalho foi reconhecido pelo governo FHC, quando o ex-ministro do Desenvolvimento Sérgio Amaral a ele confiou uma pesquisa, em que indicasse os setores mais preparados e os que não suportariam a abertura de mercado que viria com o acordo da Alca. De qualidade questionada por especialistas, a pesquisa ficou pronta em 2002, mas não chegou a ser aproveitada no governo FHC, muito menos no governo Lula, que tinha posição clara contrária à Alca.

Nos últimos quatro anos Luciano Coutinho cuidou de sua empresa, a LCA Consultores, hoje com um poderoso portfólio de clientes de primeira grandeza. Nesses quatro anos esteve longe de dogmas ideológicos e aprendeu muito com a realidade e com o pragmatismo de clientes que precisam buscar produtividade, eficiência e lucro. Mas sua visão de política industrial permanece excessivamente setorial, com foco em cada setor industrial estanque, sem se preocupar com a absorção da ¿economia do conhecimento¿ pelas empresas, que as torna mais ou menos ágeis e criativas, independentemente do setor.

Na presidência do BNDES, ele vai evitar falar de juros e câmbio ou vai até se calar. Seria dar murro em ponta de faca. Mas vai brigar para derrubar a política industrial concebida no primeiro mandato de Lula, baseada em projetos de inovação e setores tecnológicos de ponta. E vai introduzir uma visão estratégica de longo prazo, que não existiu na gestão Fiocca. Mas com propostas que têm tudo para conflitar com um velho conhecido, o economista Antonio Barros de Castro, diretor de Planejamento, como ele um estudioso de políticas industriais, mas de uma linha inteiramente oposta.