Título: A decisão do STF e a CPI duplicada
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Fonte: O Estado de São Paulo, 27/04/2007, Notas e Informações, p. A3

A unânime decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), determinando a instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Apagão Aéreo na Câmara dos Deputados, faz história - e merece uma celebração. Doravante, em nenhuma câmara legislativa brasileira, a maioria da vez, ou um presidente da Casa aliado do governante de turno, poderá impedir que a oposição emplaque uma investigação parlamentar se tiver cumprido as exigências regimentais do fato determinado a se apurar e do número mínimo de signatários em apoio à iniciativa. Já não era sem tempo. Para ficar apenas na órbita federal, em março de 2004 o presidente do Senado, José Sarney, convertido em lulista desde criancinha, recorreu a um estratagema com visíveis pés de barro para engavetar a CPI dos Bingos, nascida da irrupção do Waldogate, que tinha tudo para ser posta a funcionar.

O Supremo Tribunal Federal levou 15 meses até dar ganho de causa ao recurso da oposição, contra o voto solitário do ministro Eros Grau. Para o governo, a emenda ficou pior do que o soneto, pois a decisão acabou coincidindo com a movimentação oposicionista pelo deslindamento de um escândalo politicamente muito mais devastador - o mensalão. Mas o Planalto não aprendeu nada com isso. Apesar dessa derrota na Suprema Corte, o PT orquestrou há pouco mais de um mês uma votação em plenário para impedir a CPI do Apagão Aéreo. De seu lado, o presidente petista da Câmara, Arlindo Chinaglia, que não tivera como deixar de acolher o pedido da oposição, adiou matreiramente a publicação do seu ato para dar tempo ao contragolpe governista - a proverbial vitória de Pirro. Como se esperava, o STF considerou a jogada inconstitucional - algo gritante até para um leigo.

Mas uma coisa é o ganho para a democracia com o memento mori que o Supremo acaba de endereçar a todos quantos ainda imaginavam que o desfrute de sua condição ocasionalmente majoritária nas instituições parlamentares lhes permitiria tripudiar sobre o direito das minorias. Outra coisa é a infausta situação criada no Congresso com a formação de duas CPIs sobre o mesmo assunto, na Câmara e no Senado. Chegou-se a essa indesejável possibilidade por culpa do governo e da oposição. Os lulistas deram um tiro no pé quando se puseram a asfixiar o pretendido inquérito na Câmara, como se não os tranqüilizasse suficientemente o fato de que, ali, para cada adversário, há 2 dos seus nas bancadas da coalizão de governo de 11 partidos. Cientes disso, enquanto corria o apelo no Supremo, os senadores do PFL/DEM trataram de formar uma CPI alternativa.

Só então, por incrível que pareça, o lulismo descobriu que a primeira investigação congressual do segundo mandato seria um mal muitíssimo menor se funcionasse somente na Câmara. Não que os deputados oposicionistas, de seu lado, ignorassem que, dada a relação de forças na Casa, o ideal seria ter a CPI no Senado, onde a hegemonia do governo é mais restrita e vulnerável, tanto que quatro dos seus membros assinaram o requerimento de convocação da comissão de inquérito. Mas a oposição se pautou por uma política paroquial, feita de rivalidades entre deputados e senadores da mesma fronda, e entre o DEM e o PSDB no Senado, onde os tucanos reagiram friamente à iniciativa do aliado. Tivessem todos agido com visão política, jogariam as fichas desde a primeira hora numa CPI mista das duas Casas do Congresso ou apenas senatorial.

Do modo como ficaram as coisas, com dois inquéritos simultâneos - apesar do surpreendente corpo mole da oposição no Senado, ao concordar com o prazo de 20 dias para designar os seus representantes na CPI -, é de recear que a agora redobrada disputa dos políticos pelos holofotes dificulte a plena apuração do que há de errado no ar e em terra num aspecto do cotidiano brasileiro que se transformou em pesadelo recorrente para muitos milhares de pessoas. O governo só terá a ganhar com isso, já não bastasse o controle regimental da maioria lulista sobre a comissão da Câmara. Mais do que nunca é preciso que as CPIs sejam técnicas, não só porque técnica é a natureza das questões a esmiuçar agora, mas também para não se assistir de novo ao espetáculo das investigações do mensalão, que fizeram muito barulho, mas terminaram sem apontar antídotos para as recidivas da corrupção.