Título: Rumos políticos da América do Sul
Autor: Passarinho, Jarbas
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/05/2007, Espaço Aberto, p. A2

Constitucionalistas da metade dos anos 1960 discutiam se a cratologia poderia ser entendida como ciência política, uma vez que todo poder pode ser conhecido e explicado só no que concerne aos seus resultados, ao que faz, mas não podemos definir sua substância. Aparentemente, é uma questão de lana caprina, já que a ciência política, de modo abundante, nos ensina o processo político e os controles, horizontais e verticais, e os tipos de governo. Mas o problema surge por meio de alternativas e mesmo de deformações dos tipos de governo, especialmente a respeito da democracia. Todos sabemos, por exemplo, onde nasceu a democracia direta e como se tornou imperativo mudar a sua essência. De como as assembléias gregas tomavam a decisão e seu controle, só possível numa ordem social relativamente simples e na praça pública ou em pequenos territórios. Duraram dois séculos numa economia primária sustentada pela escravidão e deixaram evidente a natureza dos políticos, o que ainda hoje nos ajuda a classificá-los, sem menosprezar a contribuição inestimável dos gregos à cultura. Mas em política o saldo que nos deixam é em nada diverso quanto à ética e à moral. Aristides, símbolo da honestidade política, foi desterrado. Temístocles, que venceu as tropas persas impedindo que a Grécia a eles se submetessem, teve mais tarde de pedir asilo político ao seu mais encarniçado inimigo. Ignoraram as advertências de Demóstenes sobre os colaboradores com seus adversários e se deixaram seduzir por Cleon, o exemplo histórico do demagogo.

Na história contemporânea, vimos o século 20 - que o historiador britânico Hobsbawm batizou de século breve - transformar-se num período dos mais sangrentos baseado nas ideologias. Como dizia Raymond Aron, os ditadores usam dizer que estão praticando a democracia. Adjetivam-na, para tentar iludir o povo. É precisamente o que se passa no Caribe, como exemplo a seguir.

O presidente Hugo Chávez, em nome da recuperação da Venezuela, que ele acusava de ser dirigida por corruptos, tentou uma sublevação pela qual pagou alguns anos na prisão. Populista que se descobriu de esquerda, ganhou eleições. Sustenta ser democrata como poucos, mas exerce indiscutivelmente o neopresidencialismo, que Lowenstein definiu com poucas e luminosas palavras: ¿É o regime em que o detentor do poder Executivo não prescinde do Legislativo e do Judiciário, desde que submissos a ele.¿ O direito da livre manifestação do pensamento - um dos esteios da democracia - ele o eliminou. Fez lei que pune quem ousa criticar as autoridades. Fechará, a despeito de todos os protestos, até internacionais, a TV de maior audiência na Venezuela e dentre as mais tradicionais. Impôs uma Constituição que lhe garante governar sem limite de prazo, só perdendo o governo se, em plebiscito por ele organizado, a maioria votar contra ele. Gaiatos dizem que se trata da democratura, um anagrama de democracia e ditadura. Aí está uma achega à cratologia, o sistema neopresidencialista que se situa na mistura do Atlântico com o Caribe.

No Equador, outra contribuição. O presidente imita Chávez, quanto à convocação de uma Constituinte que certamente caminhará pelo mesmo rumo, a da democracia dos ditadores. Num momento, reconhece a Justiça Eleitoral como o órgão máximo do Judiciário e com ela cassa, dos 100 deputados da Câmara, 57 deles de uma vez, com a indisfarçável intenção de ficar com a maioria, pois os suplentes já estão disciplinados. Como a Corte Suprema - que em qualquer democracia é o poder judicial supremo - anula as cassações, o presidente Corrêa intervém na querela e a dissolve. Mais ainda: porque os cassados se rebelam e realizam uma sessão paralela, são presos ou fogem para a Colômbia. Reconheça-se que o povo, cansado da falta de compostura dos legisladores, aplaude a decisão antidemocrática. Do presidente Evo, nem falo, porque a Petrobrás - que ele tem lesado - é que devia falar e não o faz, evitando desagradar a vocação generosa do presidente Lula. Nasci no Acre, que ele disse havermos comprado por um cavalo. Espero oportunidade para recompensá-lo, presenteando-o com duas éguas.

Finalmente, cá entre nós, o presidente Arlindo Chinaglia, da Câmara, se revela do mesmo tipo desses governadores ¿democráticos¿: recusa instalar uma CPI apresentada segundo a norma constitucional. Repete o que se fez, vergonhosamente, no passado recente, para proteger o extorsionário Waldomiro Diniz e o Richelieu que o chefiava. Flagrado e filmado no pedido de propina, está até agora impune. Renitente, não se dobra à liminar do ministro Celso de Melo, contando obter o apoio do pleno do Supremo Tribunal de Justiça, que a manteve por unanimidade. Não lhe restando senão instalar a CPI, organiza-a com o presidente e o relator pertencentes ambos à base de apoio governamental.

O presidente Geisel, que os do PT só chamavam de ditador, respeitou o direito da oposição minoritária. Durante seu governo, foi instalada, a requerimento do MDB, a CPI do Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, que era a menina dos seus olhos e já fora aprovado pelas duas Casas do Legislativo. Presidiu-a o senador Itamar Franco, do MDB, e o relator foi um senador do PDS, norma adotada para todas as CPIs.

O presidente Chinaglia imitou, enquanto pôde, o presidente equatoriano. Acaba de descumprir uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral, a quem cabe, sem dúvida, confirmar ou não a diplomação dos eleitos. Uma vez diplomados, muitos bandearam-se. Venderam o que não tinham, porque nenhum deles se elegera sem os votos de sobra dos partidos. E os da oposição? Aderiram todos, como fizeram os ¿mensaleiros¿ da legislatura anterior, ao governo. Inventa-se a tese de que a reeleição vale pela absolvição. Deles e dos ¿sanguessugas¿.