Título: A vida num salto
Autor: Cardoso, Eliana
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/05/2007, Espaço Aberto, p. A2

No verão entre 1999 e 2000, as mortes por afogamento na Barragem Paiva Castro do Sistema Cantareira foram cinco a cada semana. Em 2001, esse número caiu, pois o Corpo de Bombeiros salvou 512 garotos que se jogaram da murada. Tamanha atração pelo risco poderia estar associada a tentativas de suicídio.

Uma tentativa ligeira recebe pouca atenção e simpatia. Mas há sempre o risco de que a morte ganhe do apostador. E quem assume grandes riscos - como o garoto que se atira da barragem em São Paulo, um assaltante ou um viciado em drogas - perde sua aposta com freqüência.

No mundo inteiro, tentativas fracassadas de suicídio são mais numerosas entre mulheres. Mas é maior o número de homens suicidas. A explicação parece relacionada à preferência da mulher por métodos falíveis, como uma overdose de pílulas, enquanto o homem usa métodos mais drásticos, como armas de fogo. Talvez ela escolha métodos ineficientes porque é mais fácil para ela, do que para ele, obter simpatia depois de uma tentativa de suicídio pouco convincente.

O médico conhece a relação entre as taxas de suicídio, de um lado, e a hereditariedade, frustrações amorosas, doença terminal, perda de status e uso de álcool, de outro. Mas nenhuma dessas correlações lhe permite prever o suicídio de um paciente. Só depois de uma ocorrência é que o psicanalista oferece uma ¿interpretação¿ para o fato. O conhecimento tem o mau hábito de andar devagar e chegar atrasado.

Desse jeito, o economista não se acanha em inventar sua própria teoria. O Prêmio Nobel Gery Becker oferece a sua no estudo Suicide: An Economic Approach, em co-autoria com Richard Posner (Universidade de Chicago, 2006). Os autores citam Hume (¿nenhum homem jogou a vida fora enquanto ela ainda valia a pena¿) e Schopenhauer (¿um homem põe fim à própria vida quando seus terrores são maiores do que os da morte¿). E partem para explicar a decisão entre o ¿ser ou não ser¿ com base num modelo em que o indivíduo maximiza a felicidade.

O trabalho leva em conta a propensão ao risco, a incerteza sobre eventos futuros e o valor da opção de espera antes da decisão fatal. E lembra que apenas uma fração muito pequena da população comete suicídio (por ano, perto de 0,005% da população brasileira).

Isso significa que, se desenhássemos a curva de distribuição da felicidade entre os indivíduos de um país, os suicidas estariam no extremo esquerdo da curva. As extremidades de uma curva de distribuição são muito sensíveis a mudanças nas médias. Por isso, o aumento das taxas de suicídio numa recessão não significa que a felicidade é muito sensível a mudanças na renda, mas que a recessão empurra mais pessoas para uma posição abaixo da linha da felicidade.

O suicida de Becker é um agente racional. Considera o futuro e toma a decisão que maximiza sua felicidade. Essa racionalidade é compatível com sentimentos de depressão (a incapacidade de extrair felicidade da própria situação). O indivíduo se mata quando presume que a infelicidade de hoje persistirá no futuro. Por isso, os suicídios são mais freqüentes entre os que sofreram uma perda violenta (do nível de renda ou de prestígio, por exemplo) e não enxergam uma chance de sair do buraco.

Cleópatra é um bom exemplo. Sobre a última soberana da dinastia original da Macedônia (que dominou o Egito depois da morte de Alexandre, o Grande), Plutarco diz que sua voz era como a de ¿um instrumento de muitas cordas¿. E que, além das quatro formas de lisonja descritas por Platão, ela conhecia outras 966.

Sua história está cercada de mortes violentas. Ptolomeu, seu irmão, mandou matar Pompeius Magnus (o primeiro amante de Cleópatra), quando ele se refugiou no Egito, depois de perder a batalha contra Júlio César. Em seguida, Cleópatra teve um filho com Júlio César, casou-se com ele e se mudou para Roma. Brutus - que sabia dos perigos do poder ilimitado, mesmo nas mãos de um político racional e responsável como César - tratou de assassiná-lo. Cleópatra voltou para o Egito e viveu durante 11 anos com Marco Antônio, que lhe deu quatro filhos. Marco Antônio suicidou-se.

A rainha se valeu da picada de uma víbora para morrer. Um intérprete vulgar falaria em fracasso. Pois, se fosse menos ambiciosa, ela teria preservado seu reino como cliente de Roma, da mesma forma que Herodes, seu contemporâneo e rival. Mas quem quer ser Herodes se pode ser Cleópatra? Convencida de que aos 39 anos não poderia seduzir Otávio e sabendo que seria exibida com seus cinco filhos numa parada, preferiu dispensar o rosário de humilhações que o futuro lhe reservava.

Assim como o suicídio de Cleópatra, o de Marco Antônio - diante da perda insuportável de seu poder para Otávio - se encaixa na teoria de maximização da felicidade que considera a queda de status e a desesperança de uma reviravolta no futuro. O suicídio de Getúlio Vargas também cabe nessa teoria.

Existem pelo menos duas personagens literárias tão notáveis e racionais - no sentido dos economistas - quanto Cleópatra, Marco Antônio e Vargas. Madame Bovary, de Flaubert, toma arsênico quando se vê endividada e sem o amparo dos ex-amantes. Ana Karenina, de Tolstoi, joga-se sob um trem, depois de perder sua posição na sociedade e de presumir que o amante começa a se cansar dela. Intrigante é que cada uma dessas heroínas chega à decisão fatal porque se deixou fascinar por uma poderosa vontade de viver.

E o menino que salta para a morte na barragem de São Paulo? Que força o empurra? O que explica seu comportamento de alto risco? Becker poderia dizer que o menino colocou dois pesos na balança. De um lado, as promessas do seu futuro. Do outro, a emoção de sentir-se vivo, pelo menos durante os poucos segundos da viagem entre a murada e as águas da barragem.