Título: Gatilho indecente
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/04/2007, Notas e Informações, p. A3

Não se discute a idéia de elevar os vencimentos dos senhores parlamentares federais para R$ 16.512,00 mensais. Afinal de contas isso significa apenas uma reposição pela desvalorização da moeda, no período que medeia do último reajuste à atualidade. E esse valor não tem nada que ver com aquele projeto (sem dúvida indecente) de elevar tais vencimentos em 91%, que foi derrubado na Justiça em razão de falhas regimentais.

Reconheça-se, por outro lado, que pela alta responsabilidade e diversidade de serviços que implicam (ou, pelo menos, deveriam implicar) mandatos de deputados federais e senadores da República, aquele valor de remuneração pareceria perfeitamente razoável. Mas longe disso está, pois tal valor é apenas uma pequena parte dos ganhos dos ilustres representantes do povo, visto que aos vencimentos destes se somam o que inapropriadamente chamam de ¿penduricalhos¿, porque pesam mais do que aquilo em que se penduram - e acabam se transformando em remuneração mensal nunca inferior a R$ 100.000,00. Discuta-se tudo isso, então, e não a pequena parcela salarial.

O presidente da Câmara dos Deputados, Arlindo Chinaglia (PT-SP), apresentou quinta-feira aos líderes partidários dois projetos de decretos legislativos. Um deles reajusta os vencimentos de deputados e senadores e o outro, os do presidente da República, do vice-presidente e dos ministros, tendo por base a reposição da inflação oficial entre dezembro de 2002 e março de 2007. Lembre-se que só os parlamentares auferem 15 salários por ano - os demais se limitam a 13 salários. Isso fará saltar a despesa anual com os 513 deputados federais de R$ 102 milhões para R$ 130 milhões, e a com os 81 senadores de R$ 15,4 milhões para R$ 20 milhões.

Os valores dos gastos dos senhores parlamentares, refiram-se eles a moradias funcionais, a veículos e combustíveis, a verbas indenizatórias (alguns já apresentaram, no bimestre, notas fiscais reembolsáveis em valores próximos de R$ 50 mil, quando só poderia ter gasto R$ 30 mil), a assessores (geralmente mais dedicados aos seus escritórios políticos nas bases eleitorais do que ao trabalho parlamentar) e tudo o mais com que os contribuintes têm que arcar, importam em cifras que tiram a dimensão dos acréscimos salariais, propriamente ditos.

Podem alegar, os representantes do povo, a diferença entre o que recebem como remuneração específica e aquilo que custam ao contribuinte, no geral. Mas para o contribuinte haverá essa diferença? Pesar-lhe-á menos no bolso aquilo que tiver o título de ¿verba de representação¿ ou que nome venham a ter as prebendas usufruídas por seus representantes no Congresso?

O problema maior, no entanto - e aí está a verdadeira indecência da nova proposta elaborada pela direção da Câmara -, é a criação de um mecanismo que garantirá reajustes automáticos para parlamentares, presidente da República, vice-presidente e ministros de Estado, todas as vezes em que servidores da União receberem aumento. Trata-se de um gatilho, ao molde do que as categorias obreiras pleiteavam ao tempo de inflação alta. Certamente a grande vantagem que os parlamentares encontrariam nesse novo sistema de reajuste, afora os ganhos numerários propriamente ditos, seria a camuflagem pela via da diluição, ou seja, a fuga a quaisquer discussões sobre seus ganhos, em razão da automatização de seus aumentos - que estariam no bojo dos aumentos gerais de ganho do funcionalismo público federal.

Tem-se percebido no Congresso Nacional a nítida tendência a escapar do desgaste junto à opinião pública, não corrigindo suas causas, mas disfarçando sua aparência. Não é de hoje que a imagem do Legislativo se desgasta em inúmeros pontos, seja no escandaloso troca-troca partidário, seja nos poucos dias de efetivo trabalho e votações em plenário - sempre sob o pretexto da assistência às ¿bases regionais¿ -, seja no renitente costume da legislação em causa própria, especialmente no campo da fixação de verbas de representação, contratação de assessores e tudo o mais que lhes confere benefícios ¿diferenciais¿ (em relação aos candidatos que ainda não obtiveram mandato) nas campanhas eleitorais.

Esse gatilho indecente é perfeitamente consentâneo com essa estratégia.