Título: Urgência da política atrasa pauta da 'vida real' no STF
Autor: Gallucci, Mariângela
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/04/2007, Nacional, p. A6

A judicialização da política chegou a um ponto em que o Supremo Tribunal Federal (STF) se ocupa, faz tempo, quase ininterruptamente com decisões sobre liminares para definir disputas que se dão no Congresso. A pressa constitucional exigida pelo Legislativo deixa em segundo plano os julgamentos da ¿vida real¿ - direito do consumidor, biossegurança, união entre homossexuais, anencefalia, pneus usados, estatuto do desarmamento, IPTU progressivo, monopólio estatal dos Correios, TV digital e outros assuntos do gênero.

O fenômeno da judicialização da política é marcante, mas fatores estruturais - como o excesso de processos, as falhas de critério na escolha do que será julgado e a inexistência de prazos rígidos para a tomada de decisões - também dão uma contribuição considerável para o atual perfil de julgamentos da Corte Suprema. Caso exemplar da ocupação do STF com assuntos do Congresso foi o julgamento da criação da CPI do Apagão Aéreo, na semana que passou.

A reportagem do Estado enviou perguntas para a presidente do Supremo, Ellen Gracie, sobre a situação atual vivida pelo tribunal. Recebeu uma resposta da assessoria de imprensa que dizia o seguinte: ¿O STF tem mais de 600 processos na pauta para julgar. Tem feito todo o possível para vencer o número de processos. A situação deve melhorar quando entrar em vigor a súmula vinculante e a repercussão geral.¿

PAUTA ASFIXIADA

Criados pela reforma do Judiciário, esses dois instrumentos (súmula vinculante e repercussão geral) permitirão uma redução no número de recursos que chegam todos os dias ao Supremo, acredita parte dos juristas. Pela súmula vinculante, as decisões do STF terão de ser seguidas pelas instâncias inferiores da Justiça. Com a repercussão geral, o Supremo poderá selecionar os temas de fato relevantes que serão julgados pelo tribunal. Já existem leis regulamentando esses instrumentos, mas o Supremo precisa adaptar seu regimento para colocar em prática essas inovações.

¿O asfixiamento da pauta do Supremo está ligado à falta de racionalidade dos critérios de acesso dos processos ao tribunal. O Supremo precisa ser dotado, como todas as cortes constitucionais importantes do mundo, de critério de discricionariedade, para ele poder selecionar o que é importante¿, acredita o advogado e professor de direito constitucional Luís Roberto Barroso.

O STF é um tribunal político. Mas também tem outras atribuições, como garantir o cumprimento dos direitos fundamentais das pessoas. Um exemplo emblemático da dedicação do STF a temas políticos ocorreu em dezembro do ano passado.

No dia 18 de dezembro, três deputados pediram ao Supremo que concedesse uma liminar para suspender um ato conjunto das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado que dava reajuste salarial de 91% aos congressistas. Num prazo recorde, no dia seguinte, o plenário do Supremo referendou liminar concedida pelo relator da ação, ministro Ricardo Lewandowski, para que as mesas do Congresso não pagassem o reajuste aos parlamentares. Na ocasião, havia grande repercussão negativa na mídia em relação a esse aumento.

¿Infelizmente, hoje, a pauta do STF vem sendo montada pelas demandas criadas a partir dos órgãos de imprensa. Além de serem questões políticas, são questões midiáticas¿, avalia o presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Flávio Pansieri.

Nesse cenário, continuam sem julgamento ações de grande interesse da população em geral. Entre essas ações estão as que discutem as pesquisas científicas com células-tronco embrionárias e a liberação das interrupções de gestações de fetos com anencefalia (ausência total ou parcial do encéfalo).

EXCESSO DE TRABALHO

Um dado que não pode ser desprezado é o elevado número de processos que são protocolados e julgados anualmente pelo STF. No fim do ano passado, por exemplo, a presidente do STF informou que foram julgados em decisão final 69.308 casos. No entanto, grande parte desse montante tratava de matérias já decididas pelo tribunal.

Ministro aposentado do STF e ex-integrante da Corte de Haia, Francisco Rezek concorda com a avaliação de que a quantidade de processos impede que os ministros se dediquem a temas relevantes de interesse da sociedade. ¿O que já era grave quando eu saí do tribunal, há dez anos, e hoje está muito mais grave é a quantidade de trabalho. A massa de processos que chegam ao STF sobre a forma de recursos é uma coisa tão grande que não deixa o tribunal ter tempo para administrar rapidamente o que é o principal, que são as grandes questões constitucionais, que despertam o interesse coletivo e que têm a ver com os sentimentos divididos dentro da sociedade¿, avalia Rezek.

Segundo ele, se houvesse uma situação ideal, com menos processos, o Supremo poderia se dedicar a essas grandes causas de interesse da sociedade. ¿Se a situação fosse ideal, o tribunal não só resolveria esses problemas com maior rapidez, mas resolveria de acordo com o melhor figurino, com audiências públicas, como a que vai ocorrer no dia 20, sobre o uso de embriões humanos¿, ressalta Rezek.

Para sexta-feira está marcada no STF uma audiência pública para discutir com especialistas as pesquisas com embriões humanos. A Lei de Biossegurança, que prevê esses estudos, foi questionada em 2005 no Supremo pelo ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles. A previsão é de que o julgamento ocorra neste semestre.