Título: O fim da era intervencionista de Tony Blair
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Fonte: O Estado de São Paulo, 29/04/2007, Internacional, p. A14
Tony Blair surge no jardim de Downing Street, 10, com passos largos e decididos, como se estivesse pronto para mais dez anos. Ele diz que está aproveitando suas últimas semanas e vive ¿mais ocupado que nunca¿. O primeiro-ministro britânico em fim de mandato parece cheio de energia, vigor mental e aquela paixão quase compulsiva por convencer, que ele compartilha com o candidato conservador à presidência francesa, Nicolas Sarkozy.
Enquanto se prepara para a chegada do décimo aniversário de seu governo, na quarta-feira, e para o posterior anúncio do cronograma de sua saída, Blair fala sobre sua gestão da política externa britânica com uma tranqüilidade e uma franqueza que não eram visíveis em fases anteriores - pelo menos não quando ele falava publicamente.
Peço-lhe que enumere seus três maiores sucessos e fracassos de política externa. Ele não quer. ¿Não faço esse negócio de sucessos/fracassos... Deixo isso para vocês¿ - presumivelmente, para os historiadores e jornalistas. Mas ele se diz orgulhoso por ter desenvolvido uma abordagem estratégica para a política externa britânica baseada na combinação de força e diplomacia, e promovido alianças estratégicas com a Europa e os EUA.
Em seu governo, a Grã-Bretanha desempenhou um papel significativo em ações de força, seja a remoção do Taleban, a derrubada de Saddam, seja em Kosovo ou em Serra Leoa. O país fez o mesmo em áreas de diplomacia, como a África e a mudança climática; e continua sendo um ator fundamental na maioria das grandes questões, como o Sudão, as negociações globais de comércio ou o Irã. A Grã-Bretanha é um país de apenas 60 milhões de habitantes ¿num espaço geográfico relativamente pequeno¿, portanto, ¿tem de fazer sentir seu peso e sua influência por meio de suas alianças¿.
É uma idéia bem articulada, mas dificilmente original. A maioria dos primeiros-ministros dos últimos 40 anos teria concordado. Então qual é a característica particular da abordagem de Blair? Qual é a essência do blairismo? Sua resposta não poderia ter sido mais clara: ¿É o intervencionismo liberal.¿
INTERVENCIONISMO
O blairismo, explica ele, é uma visão progressista do mundo, a começar pela realidade da interdependência numa era de globalização, que age segundo certos valores. ¿Sou um intervencionista orgulhoso.¿
Ele não retiraria nada do que disse em seu discurso de 1999 em Chicago, com sua ¿doutrina intervencionista liberal da comunidade internacional¿. Mesmo que seja verdade, como sugiro, que o governo do presidente dos EUA, George W. Bush, se afasta da defesa da democratização como um dos pilares de sua política externa, Blair não faz o mesmo: ¿Estejam eles se afastando ou não, eu não estou.¿
Isso inclui o Iraque. A maioria esmagadora da população iraquiana quer a paz e a democracia, mas está sendo sabotada por ¿atores externos¿ - ele menciona o Irã e a Al-Qaeda - e por ¿uma minoria de extremistas internos¿. Não seria um pesadelo para ele passar o resto da vida respondendo a perguntas sobre o Iraque? Não, isto lhe parece perfeitamente razoável. Mas, ¿quando as pessoas dizem que `o Iraque determinará tudo¿, a resposta é: depende do que acontecer¿. Então elas estão erradas ao argumentar que o Iraque determinará o veredicto sobre sua política externa? Não, esta foi sem dúvida uma ¿grande parte¿ de sua política; mas é cedo demais para prever o desfecho no Iraque. A História dirá.
Entro no assunto daquelas duas alianças. O único grande pilar de política externa no manifesto eleitoral trabalhista de 1997 era ¿dar à Grã-Bretanha a liderança na Europa que a Grã-Bretanha e a Europa precisam¿. Ele fez isso? Bem, ¿a Grã-Bretanha tem sido um país líder na Europa¿, diz ele, um pouco na defensiva, embora, ¿na superfície, as atitudes britânicas permaneçam impassivelmente eurocéticas¿. Grande parte disso deve-se à mídia eurocética. A Europa é sobretudo a área ¿onde sou conclamado, até mesmo por setores bastante sensatos da mídia, a fazer coisas que considero completamente idiotas, e que qualquer pessoa em meu lugar consideraria completamente idiotas¿.
Mas ¿tenho uma teoria sobre isso¿. É a de que ¿o povo britânico é sensato o suficiente para saber que, mesmo se tiver um certo preconceito em relação à Europa, não deve esperar que seu governo necessariamente compartilhe dele ou aja de acordo com ele¿. Assim, por exemplo, no Conselho Europeu de 21 e 22 de junho (do qual ele claramente pretende participar como premiê), Blair espera entrar em acordo com outros líderes europeus sobre os termos para a negociação de um tratado, decidindo as mudanças institucionais necessárias para que uma União Européia ampliada funcione. Não mais uma Constituição, só um simples tratado retificador. A imprensa eurocética vai gritar, mas essa continuará sendo ¿a decisão adequada no verdadeiro interesse nacional britânico¿.
Então, com um novo presidente francês, uma chanceler alemã amigável e um presidente da Comissão Européia prestativo, a Grã-Bretanha poderá avançar com os parceiros para tratar de questões mais importantes para o futuro da Europa.
Pergunto se Blair sente uma certa aflição ao ver que o grupo de líderes europeus dos sonhos de Downing Street parece surgir justo quando ele sai de cena. Blair começa a rir antes mesmo de eu terminar a pergunta e então diz, com um sorriso irônico: ¿C¿est la vie.¿ Entendo isso como um ¿sim¿.
RELAÇÃO ESPECIAL
Quanto à outra aliança fundamental da Grã-Bretanha, pergunto o que o país realmente ganhou com sua ¿relação especial¿ com Washington na última década. O que ela nos ofereceu? A relação em si, responde Tony Blair, e a influência que ela nos permite exercer em outras questões, como as negociações globais de comércio e o processo de paz no Oriente Médio. ¿É hora de termos uma política externa independente¿ é a frase de efeito mais fácil do mundo, mas comece a se distanciar dos Estados Unidos e veja como sua influência diminuirá.
Embora argumente que as relações da Grã-Bretanha com a Europa e os EUA são mais fortes que há dez anos, Blair reconhece que os britânicos ainda estão longe do ideal de ficar ¿à vontade¿ com a relação dupla. A direita britânica não está mais feliz com nossos laços com a Europa do que estava em 1997. E a esquerda está ainda menos feliz com nossos laços com os EUA. Alguns setores da mídia, acrescenta o primeiro-ministro, agora são ao mesmo tempo eurocéticos e antiamericanos: ¿Vá entender...¿
Talvez a maior mudança em seus dez anos de governo tenha sido o modo como o global superou o local. ¿A política externa não é mais política externa.¿ O dilema de um líder nacional é que ¿seu país quer que ele se concentre nas questões domésticas, mas a verdade é que os desafios que ele enfrenta são freqüentemente globais¿. Por exemplo, é importante tomarmos medidas domésticas em relação à mudança climática, mas, na verdade, ¿o objetivo disso é ganhar força na liderança internacional¿.
Assim, precisamos de mais governança global: reforma da ONU e alianças para a ação. Uma comunidade de democracias é uma boa idéia, mas, em termos políticos práticos, ¿construímos a partir da aliança européia-americana¿. Enquanto os pássaros cantam ao redor da suntuosa glicínia no jardim de Downing Street, ouço os ecos de várias palestras a ser oferecidas por um velho estadista.
Muita gente no mundo, não só nos Estados Unidos, gosta do que Blair diz e de grande parte do que ele fez. Outros, especialmente na esquerda britânica, odeiam. Mas não se pode afirmar, pelo menos em relação à política externa, que o blairismo não tem substância. Amado ou odiado, Tony Blair defendeu algo na política externa - e pode nos dizer exatamente o que é.