Título: Na nova China, novas antiguidades
Autor: Mafra, Claudio
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/04/2007, Internacional, p. A16

Em frente à Cidade Proibida apresenta-se um guia. Explico que moro em Pequim e não preciso de ajuda, mas quando ele diz que é professor universitário, fico interessado. Melhor ainda, descubro que ele quer desabafar.

Ao invés de fugir do assunto político, o guia vai logo dizendo que a China é uma ditadura, que passa fome, que não existe liberdade de expressão. De repente, pede que eu me afaste, vira as costas e caminha devagar para junto dos outros guias. Depois volta e diz que ficou com medo de estar sendo vigiado por um agente do governo. No fim, ele se convence de que não é nada, e aproveita as minhas perguntas para falar mal dos poderosos.

O guia me diz que eu não tenho idéia de como é ruim ser chinês, ganha pouquíssimo, é contra o regime, se pudesse iria embora. Ao contrário da quase totalidade de seu povo, ele tem uma boa noção das mudanças que estão ocorrendo no país. Quando pergunto em quanto tempo ele estima que a China se transformará em uma democracia, responde com muita confiança: ¿Em uns 15 ou 20 anos.¿

NOVOS COSTUMES

No caminho ladeado por estátuas da impressionante tumba Ming encontro uma espetacular modelo profissional. Ela é uma perfeita adaptação aos novos costumes da nova China. Vendo o meu entusiasmo, ela faz um sinal para seus fotógrafos e gentilmente começa a posar para mim. Surpresas como essa não são raras para quem mora em Pequim. Os chineses têm o maior prazer em entrar em contato com os ocidentais, e algumas vezes tomam a iniciativa.

Esta é uma cidade com muitos encantos. Os grandes espaços, as ruas arborizadas, os parques, os lagos, os antigos templos e palácios. Uma larga avenida central leva à Praça Tiananmen (Praça da Paz Celestial), o centro do poder, onde estão a tumba de Mao Tsé-tung e a Cidade Proibida.

Ao contrário do que se imagina, não se anda trombando nos chineses quando se caminha pelas ruas. A famosa população de 1,3 bilhão de habitantes está bem espalhada por toda a China. Pequim tem um movimento igual ao das grandes capitais brasileiras.

O difícil de suportar é a poluição brutal, as pessoas cuspindo no chão, empurrando, fumando feito chaminés e fazendo o maior barulho enquanto comem com a boca aberta. Também incomoda muito a ansiedade que domina o chinês. Está longe da consagrada serenidade oriental. Ele nunca parece tranqüilo, é sempre elétrico, você ainda não acabou de mostrar o que deseja e alguma coisa já foi feita, geralmente na direção errada. A expressão ¿paciência chinesa¿ não pode ser aplicada aos chineses.

No táxi, você estende o papelzinho com o endereço. O chofer pega, olha, torna a olhar, resmunga, sai do carro e se dirige a seu colega em outro táxi. Este outro taxista também olha, os dois conversam, ele volta e balança a cabeça dizendo que não. Mas é um lugar tão famoso e não sabem onde fica? Ou não querem levar? Nada disso. Eles não sabem ler, são analfabetos.

Nesta cidade, tudo é possível. Você se assusta quando vai comprar alguma coisa e, ao chegar, vê que o lugar não existe mais. Eles derrubam um quarteirão inteiro da noite para o dia, colocam vasos de flores em frente do tapume e começam a construção num ritmo só possível em um país totalitário com essa população inacreditável.

`MODERNIZAÇÃO¿

A China é a mixagem de um Estado policial com a índole peculiar de um povo que é humilhado, pisado, há séculos. O chinês flutua ao sabor da vontade dos seus dirigentes. Não sabe nada do que está acontecendo, nem quais são os planos para o futuro do país. No momento assiste passivo, errante, às transformações radicais em suas grandes cidades.

Pequim impressiona pelos edifícios luxuosos, as grifes famosas, e a classe média muito bem vestida usando as maravilhosas falsificações.

Nas palavras dos chefões do Partido Comunista, a China está passando pela ¿modernização do comunismo¿, mas a verdade é que hoje são aplaudidas as mesmas coisas que foram violentamente condenadas pelo ex-líder Mao Tsé-tung, as mesmas que levaram a China ao banho de sangue em um passado recente.

Com isso, os miolos dos chineses já viraram geléia de mocotó. Para confundi-los ainda mais, o retratão do antigo ditador continua na frente da Cidade Proibida e a sua cara aparece em todas as notas da moeda chinesa, o renminbi (ou yuan).

O que pensam os chineses sobre isso? Não pensam, apenas aceitam o que as autoridades decidiram: ¿Mao foi um grande líder, mas, como todo ser humano, passível de erros. Ele errou 30% e acertou 70%.¿

BATATA GIGANTE

Outro dia eu vi uma batata doce de 30 quilos em uma badalada exposição de fotografias. Batata falsa, é claro, que deve ter sido feita de pano ou papel. É uma foto dos tempos do Grande Salto Para a Frente, quando o governo dizia que a agricultura chinesa estava conseguindo cultivar cenouras de 1 metro de comprimento e outras insanidades. No balcão, onde se vendiam as cópias, não confirmaram que a batata era falsa. Disseram que não sabiam de nada, e passaram a me evitar. Ninguém quer se meter em encrencas. Mao já se foi, mas o Estado totalitário protege seus ex-líderes. No Brasil, eram publicadas nos jornais as notícias dos pepinos, alfaces, jilós maravilhosamente gigantescos, mas de maneira neutra, sem críticas. Alimentava-se o sonho de que na China estava acontecendo algo realmente inovador, épico.

PIPAS

Os meus melhores amigos chineses estão na Praça da Paz Celestial. É aonde eu levo as minhas pipas para empinar. Ficamos um tempão na ociosidade, exibindo nossas habilidades. Os chineses são os mestres das pipas. Algumas são realmente lindas e tão baratas que eu compro tudo que me oferecem. Eles gostam de passar a mão na minha barba porque acham hilários os fios brancos. A começar pelos honoráveis dirigentes do Partidão Comunista, todo mundo na China tinge o cabelo de preto.

BUDA DE MADEIRA

Um diplomata brasileiro, apaixonado por arte oriental, compra, muito barato, um Buda de madeira. Ele acredita que a peça deve ter no máximo 100 anos, o limite estabelecido pelo governo chinês para que ela possa sair do país. Pouco depois, um especialista informa que ele foi enganado - trata-se de uma das antiguidades envelhecidas a martelo. No dia em que vai deixar a China, quando está empacotando sua mudança, aparece um inspetor do patrimônio chinês e embarga a peça. Não pode levar porque ela é muito ¿olda¿ (de ¿old¿, velho), muito antiga. Completamente confuso, ele viaja e deixa o Buda com seus colegas para ser vendido pelo preço que pagou.

Eu resolvo me arriscar e compro o Buda. Algumas pessoas ¿práticas¿ me aconselham a escondê-lo na casa do vizinho quando chegar a hora da minha partida e avisam, conspiratoriamente, que existe o risco de a minha empregada chinesa me dedurar para as autoridades. O quê? Sim, já aconteceu, dizem. Elas podem ser espiãs do governo, da mesma maneira que se acredita sejam espiãs as intérpretes chinesas que trabalham nas embaixadas. Bem, o Buda ficou todo o tempo colocado no centro da minha sala, e continua no mesmo lugar, agora no Brasil.