Título: Conselho de Ética para quê?
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Fonte: O Estado de São Paulo, 28/04/2007, Notas e Informações, p. A3

É uma afronta ao senso elementar de decência o pretexto invocado no Conselho de Ética da Câmara - tristemente vitorioso por 9 votos a 4 - para não se retomar processos por quebra de decoro contra 3 parlamentares envolvidos nos escândalos do mensalão e dos sanguessugas na legislatura passada. O trôpego argumento da maioria governista foi o de que, ao devolvê-los às suas cadeiras, o eleitorado os absolveu: portanto, reiniciar procedimentos capazes de levar a punições contra eles seria ir de encontro ao julgamento popular. Beneficiaram-se da imaginária anistia das urnas os mensaleiros Paulo Rocha, do PT paraense, e Valdemar Costa Neto, do PR paulista, e o suspeito de vampirismo João Magalhães, do PMDB mineiro.

Rocha, receptor de R$ 920 mil do valerioduto, e Costa Neto, o ¿Boy¿ (que pôs as mãos em R$ 6,5 milhões), foram denunciados pelo procurador-geral da República. O primeiro, por crime contra a administração pública e o sistema financeiro e participação na ¿sofisticada organização criminosa¿ montada pelo petismo para se perpetuar no poder. O segundo, por formação de quadrilha, corrupção e lavagem de dinheiro. Ambos renunciaram aos mandatos para sustar no Conselho de Ética os processos que os exporiam ao risco de cassação. Precaução supérflua: com toda a probabilidade se safariam na Pizzaria Plenário, como foi o caso de 13 dos 19 mensaleiros cujas cabeças o Conselho havia pedido.

Contra Magalhães, o terceiro, apontado como membro da máfia das ambulâncias superfaturadas, o processo até que foi aberto, mas acabou arquivado quando a legislatura acabou. Por isso, aliás, nem um único dos 93 sanguessugas chegou a ser punido. Iniciado o novo ano legislativo, o PSOL pediu o início ou reinício dos processos travados. Mas o corporativismo, robustecido pelo empenho do governo em impedir que o mensalão voltasse à baila, falou mais alto. Os principais instrumentos dessa convergência de interesses espúrios foram o relator do pedido, Dagoberto Nogueira, do PDT de Mato Grosso do Sul, e, para espanto de muitos, o petista José Eduardo Martins Cardozo, de São Paulo.

Ele contribuiu com um adendo que na prática só serviu para dourar a pílula: suspeitas de crimes em legislaturas passadas poderão ser averiguadas, se vierem a público depois da reeleição dos envolvidos ou se surgirem fatos novos em relação a casos já arquivados. Mas o pervertido princípio da absolvição pelas urnas foi sacramentado, firmando uma espécie de jurisprudência da locupletação premiada. Isso não obstante o antigo entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) de que atos cometidos em legislaturas anteriores podem, sim, ser objeto de processo quando os suspeitos obtêm novo mandato. ¿Não podemos ignorar que o povo votou nesses deputados¿, defendeu-se Cardozo.

Se assim é, o Conselho de Ética perdeu a razão de ser, derrogado pelo eleitor convertido em árbitro último das acusações de quebra de decoro contra um parlamentar. Ou seja, nenhum legislador poderia ser cassado pelos seus pares: sua punição ou absolvição ficaria ao sabor das urnas, caso ele insistisse em permanecer na política. Mors omnia solvit, diziam os romanos - a morte tudo resolve. A eleição tudo resolve, parafrasearam os 9 conselheiros, indecorosamente. (Voto vencido, o sul-mato-grossense Nelson Trad, do PMDB, teve a hombridade de renunciar ao órgão, em protesto contra a aberração.) De todo modo, mesmo supondo legítima a abdicação de atribuições implícita nesse lavar de mãos, há uma objeção irrespondível, levantada pela cientista política Lúcia Hippólito.

¿O sistema eleitoral brasileiro elege deputados pelo voto proporcional¿, observa. ¿Isto significa que o eleitor pode votar num candidato e eleger outro, completamente diferente.¿ É a norma: dos 513 deputados federais eleitos em outubro último, apenas 39 chegaram ou voltaram à Câmara ao igualar ou superar o quociente eleitoral dos respectivos Estados. Isto é, só esses se elegeram com os próprios votos. As regras do jogo, portanto, fazem do eleitor, quase sempre, um juiz cego, cujos poderes para ¿absolver¿ ou ¿condenar¿ candidatos são objetivamente limitados. E, incidentalmente, nenhum dos 3 deputados favorecidos no Conselho de Ética se elegeu com votos exclusivamente seus.