Título: Remendos na política comercial
Autor: Abreu, Marcelo de Paiva
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/05/2007, Economia, p. B2

O atual governo tem explicitado, com freqüência, preferir remendos a medidas conseqüentes e refletidas. Bom exemplo foi a decisão recente de aumentar tarifas de importação sobre calçados e vestuário. As muitas críticas, entretanto, deixaram de lado aspectos fundamentais. O aumento da tarifa de 20% para 35% poderá ter modesto efeito sobre preços domésticos: no limite, talvez da ordem de 0,3%. A apreciação cambial decorrente da contração de importações seria ínfima, pois as importações aumentariam apenas em torno de 0,1%. Mais graves são os riscos associados à possibilidade de generalização do procedimento adotado e o enfraquecimento que a decisão implica em relação à posição que o País adota nas negociações multilaterais na Organização Mundial do Comércio (OMC).

As tarifas industriais do Brasil - e dos seus parceiros no Mercosul - foram consolidadas em 35% na Rodada Uruguai. Se, por algum motivo, o Brasil desejar exceder este limite terá que negociar concessões compensatórias com seus parceiros. Muitos países em desenvolvimento, em contraste com os desenvolvidos, praticam tarifas muito abaixo dos níveis consolidados na OMC. A principal razão alegada para esta prática era que, dada a rigidez das políticas cambiais, seria necessária certa margem de segurança para enfrentar surtos de importação. Tal argumentação perdeu força com a adoção generalizada de regimes de taxas cambiais flutuantes. O hiato entre tarifas consolidadas e tarifas praticadas que se constata hoje é, em certa medida - se for aceito que as negociações multilaterais envolvem concessões recíprocas -, um retrato das oportunidades perdidas pelas economias em desenvolvimento, que poderiam em tese ter extraído maiores concessões de seus parceiros desenvolvidos, se estivessem dispostas a reduzir os níveis tarifários consolidados aos efetivamente praticados.

As razões alegadas para a decisão de aumentar seletivamente as tarifas são a ocorrência generalizada de subfaturamento do valor das importações e a lentidão do processo decisório quanto à implementação de medidas antidumping. Quanto ao subfaturamento, aumentar a tarifa decididamente não é a medida mais adequada para assegurar que os preços praticados não sejam falsificados rotineiramente. Os argumentos de que as indústrias beneficiadas 'não sobreviveriam' até que houvesse decisão sobre a imposição de direitos temporários não são coerentes com as informações disponíveis sobre a expansão da penetração das importações de vestuário e calçados no mercado brasileiro. Além disso, embora a China seja o maior supridor do Brasil nas classes tarifárias relevantes, o aumento de tarifas tem impacto sobre todos os parceiros, em contraste com os instrumentos de defesa comercial que são direcionados. O argumento governamental sobre prazos de implementação seria mais crível se tivesse havido abertura concomitante de processos antidumping.

A atual tarifa média simples brasileira, que é a Tarifa Externa Comum do Mercosul, está em torno de 10%. Muito abaixo, portanto, dos 35% consolidados, o que cria, em princípio, espaço para seu aumento, desde que haja anuência dos parceiros do Mercosul. No caso de vestuário e calçados, a concordância argentina estaria garantida, pois bens de consumo já fazem parte da lista nacional de exceções, mas há possíveis resistências de outros parceiros, além de limites à lista brasileira de exceções.

O desempenho das exportações tem sistematicamente contrariado visões alarmistas quanto à gravidade da desindustrialização brasileira. É claro que está havendo redefinição de vantagens comparativas setoriais e alguns setores têm demonstrado maior capacidade de adaptação às novas condições do que outros. Quanto a isso não deve haver ilusões. Mas a resposta adequada do governo a surtos de importações não deveria ser o aumento de proteção, mas a adoção de políticas de reconversão industrial, de inovação e de estímulo à competitividade. É neste quadro que tem sentido a insistência no caráter fundamental de reformas estruturais como a tributária e a previdenciária, acompanhadas de 'upgrade' na insatisfatória ação pública para sanar as deficiências da infra-estrutura.

Aumentar a proteção, mesmo que dentro da legalidade da OMC, enfraquece a credibilidade da posição do Brasil para desempenhar de forma convincente o papel de defensor da liberalização agrícola. Tanto em relação aos EUA e à União Européia quanto perante os seus companheiros mais protecionistas do G-20, como a Índia e, no fundo da quadra, a China. Embora hoje as atenções estejam concentradas nas negociações agrícolas - objeto de corajosa tentativa de ruptura do impasse no documento do presidente do grupo de negociações agrícolas, Crawford Falconer (ver site) -, os entendimentos do G-4 certamente devem tratar também da liberalização de tarifas industriais em economias em desenvolvimento, um dos focos de interesse das economias desenvolvidas. A essa altura, o recado brasileiro com o aumento da proteção pode desgastar a imagem construída em muitos anos de atuação na OMC.