Título: Descaminho fiscal
Autor: Werneck, Rogério L. Furquim
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/05/2007, Economia, p. B2

No quadro excepcionalmente favorável que atravessa a economia brasileira, a condução da política fiscal continua sendo fonte importante de incerteza. De um lado, porque boa parte da atual equipe econômica não perde oportunidade de revelar quão pouco convicta de fato está da necessidade de um cumprimento estrito das metas fiscais. De outro, porque o ministro da Fazenda tem mostrado incorrigível propensão a se encantar e se comprometer publicamente com quase todo tipo de idéia nova que lhe seja apresentada na área fiscal. Não há balão-de-ensaio que não lhe fascine. Quando compreende que tais idéias não são nem tão novas nem tão boas, e afinal recua, o dano já está feito. A cada 'dito por não dito', cresce a incerteza sobre a política fiscal. No início da semana passada, esse ciclo de encantamento, compreensão e recuo pôde ser observado com muita clareza, por quem conseguiu acompanhar a rápida evolução da posição do governo sobre a proposta de ampliação dos limites de endividamento dos Estados e municípios. Lançada pelos governadores, a proposta foi percebida por aprendizes de feiticeiro em Brasília como uma idéia engenhosa que poderia facilitar em muito a aprovação pelo Congresso de medidas que o governo federal considera importantes, como a prorrogação dos prazos de vigência da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) e da Desvinculação de Receitas da União (DRU). A reação favorável do ministro da Fazenda foi festejada pelos governadores e vista como sinal verde para o avanço de negociações de empréstimos que já vinham sendo entabuladas com potenciais credores. Mas, desta vez, o recuo do ministro não tardou mais que 24 horas. Tendo 'refeito' as contas, a Fazenda declarou que constatara que, na verdade, a idéia não lhe parecia tão boa assim. Ao fim e ao cabo, mais uma manifestação completamente impensada, de alto custo, que deixou exposta a real extensão da falta de reflexão do ministro sobre uma das questões mais fundamentais da política econômica brasileira, e que lançou novas e sérias dúvidas sobre os rumos da política fiscal. De graça. Não está nos interesses do País deflagrar, a esta altura da partitura, novo ciclo de endividamento dos governos subnacionais. É mais do que sabido que, ao fim de um longo processo de quase 15 anos de expansão explosiva de gastos primários dos três níveis de governo, a economia brasileira está hoje entravada por uma carga tributária extorsiva, sem paralelo entre países em desenvolvimento. O dispêndio primário total da União, dos Estados e dos municípios absorve mais de 30% do PIB. Apenas uma pequena fração é investida. Todo o resto é destinado ao consumo do governo e a transferências. E, no entanto, isso se traduz num fluxo de serviços governamentais de qualidade muito inferior à que se observa em outras economias em desenvolvimento, com gastos primários que mal chegam a 20% do PIB. Nesse quadro de óbvio inchamento do dispêndio primário dos três níveis de governo, não há por que ampliar ainda mais o poder de gasto dos governos subnacionais, abrindo-lhes acesso farto a endividamento. Essa saída fácil só contribuiria para agravar o quadro fiscal e tornar mais improvável o avanço da agenda de racionalização de gasto público, que hoje se faz necessária em todos os níveis da Federação. É mais do que natural que os governadores estejam fascinados com as possibilidades que lhes seriam abertas por um novo ciclo de endividamento na esfera estadual. E que prefiram deixar a seus sucessores o desafio de abrir espaço nos orçamentos dos Estados para gastos mais meritórios. Mas não há por que permitir que dêem vazão a esse imediatismo. É preciso manter o País em rota fiscal mais conseqüente. A difícil economia política da racionalização do gasto público no País poderá se tornar, por muitos anos, bem mais adversa do que já é, se o governo federal permitir que os governadores se vejam de repente com restrições orçamentárias muito mais frouxas do que vinham antecipando. Parece paradoxal, mas se o País se deixar levar pelo discurso de 'crescimento com endividamento' dos governadores, estará abrindo mão por muito tempo da possibilidade de convergir para uma trajetória de crescimento menos medíocre do que foi possível nos últimos anos. Cabe ao governo federal evitar tal descaminho.