Título: Sem Chirac, o adeus ao estilo gaullista
Autor: Lapouge, Gilles
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/05/2007, Internacional, p. A15
Jacques Chirac, presidente da França, vai desaparecer do nosso horizonte. Mas não será imediatamente colocado num armário, num museu, ou num sótão. A ocasião será aproveitada para tirar um pouco do pó de sua imagem, reformá-lo, talvez comprar um novo terno e fazer novo corte de cabelo. Na verdade, Chirac alimentou durante anos, todas as noites às 20 horas, o melhor programa da TV francesa, 'Les guignols de l'info' (as marionetes da informação), um programa massacrante e cômico sobre a política, animado por marionetes geniais, com vozes emprestadas a cada uma delas por imitadores.
Entre essas marionetes, a de Chirac é a mais divertida. A imitação do presidente bate a de todos os seus comparsas: astuto, simpático, barroco, terno, estrondoso, trapaceiro e glutão. Os criadores do programa não têm coragem de privar repentinamente os franceses de um comediante tão genial como a marionete de Chirac. Se é verdade que ele será obrigado a deixar o Eliseu, pelo menos sua marionete terá direito a um 'sursis': o tempo necessário para o sucessor vestir o traje de presidente.
Na vida real, Chirac também conseguirá obter um 'sursis'? É difícil. A verdadeira ruptura acontecerá hoje. Uma ruptura de gerações (a chegada de um cinqüentenário ao Eliseu) e espiritual - a eleição de uma pessoa não atingida pela 'fascinação' por De Gaulle. A política francesa vai se libertar do estilo gaullista e dos programas repisados por Chirac durante 12 anos. A maioria dos estrangeiros se alegra. Sobretudo nos Estados Unidos. O Herald Tribune, eufórico, declarou que 'pelo menos não será mais Jacques Chirac!'
E o que esperar? Para o New York Times, Sarkozy (ou mesmo Ségolène, no improvável caso de ela ganhar a eleição) derrubará os dois sustentáculos da diplomacia de Chirac: um programa moldado pela Guerra Fria de um lado e, de outro, a prioridade dada às antigas colônias francesas.
Esses dois pontos devem ser modificados. A Guerra Fria? Ela já tinha acabado cinco anos antes de Chirac chegar ao Eliseu. É provável que o New York Times faça alusão ao antiamericanismo de Chirac. Ele é real. Mas não é explicado pela Guerra Fria. Ele nos leva diretamente a De Gaulle, cujo antiamericanismo visceral nasceu durante a 2ª Guerra, época em que De Gaulle, chefe da França Livre em Londres, precisou lutar ferozmente contra os americanos. Roosevelt o detestava e sonhava fazer da França, após a libertação, um país secundário e sob tutela.
Foi sobretudo na guerra do Iraque que a hostilidade de Chirac para com os EUA explodiu. Lembremos o clamor da censura a George W. Bush no Conselho de Segurança da ONU, apresentada por Villepin, em fevereiro de 2003. E se Chirac não conseguiu impedir Blair de se unir a Bush, pelo menos soube formar, com o alemão Gerhard Schroeder e o russo Vladimir Putin, uma 'frente da recusa'.
Com a partida de Chirac, mesmo se a marionete continuar respirando nos bastidores, podemos esperar que seu sucessor apagará o quadro manchado de antiamericanismo de Chirac?
Os EUA colocam suas esperanças em Sarkozy. Este nunca aprovou os protestos contra Bush que partiram do Eliseu. Em setembro de 2006, quando era o ministro do Interior, Sarkozy foi a Washington, criticou a arrogância francesa e o discurso de Villepin perante o Conselho de Segurança. Essa visita, e a insistência para ser fotografado ao lado de Bush, parecia uma declaração de obediência. Na França, foi um choque. Sarkozy ganhou o apelido de 'pequeno Bush', título estúpido que, aliás, não pegou.
Certamente ele não vai se colocar ao lado de Bush no Iraque (recentemente ele assumiu distância do caso), mas deverá aderir mais à diplomacia americana no mundo e em particular no Oriente Médio. Também uma herança gaullista, Chirac privilegiou os países árabes em detrimento de Israel. Sarkozy também já manteve distância dessa posição. Ele visitou Israel em 2004 e evocou o fim da política árabe da França. Reuniu-se com o primeiro-ministro Ariel Sharon e recusou-se a entrar em território palestino, conquistando com isso o amor de Israel.
Em agosto de 2006, quando as bombas israelenses caíam sobre o Líbano do Hezbollah e Chirac procurou obter um cessar-fogo, seu ministro Sarkozy se destacou, ao declarar que Israel 'tinha o direito de se defender', coincidindo com a posição de Bush. Mais recentemente, ele prometeu uma 'política mais equilibrada em relação a Israel' e se disse disposto a defender a 'integridade do Líbano', mesmo que isso envolva o 'desarmamento do Hezbollah'.
Isso tudo significa que Sarkozy derrubará a estrutura diplomática de seu antigo chefe? Não vamos exagerar. Sarkozy (como Ségolène) é contrário a uma ação militar contra o Irã, mas quer sanções mais severas contra Teerã e o Sudão (por causa de Darfur), rejeita a suspensão do embargo de armas contra a China e acha que o escudo antimísseis dos EUA deve ser debatido com os europeus.
Uma outra ilusão: na França, Sarkozy é tido como um liberal, influenciado por Margaret Thatcher, Tony Blair ou mesmo Ronald Reagan. É inexato. A economia francesa seria incapaz de funcionar com base unicamente nas leis do mercado. E embora Sarkozy não seja contra a globalização, ele cultiva, ao mesmo tempo, um vivo patriotismo econômico. No momento em que uma empresa européia desejar colocar a mão numa firma francesa, ele sairá rapidamente da sua toca rugindo como um leão.
Charles Grant, diretor do Centro de Reforma Européia, garante que Sarkozy é protecionista, adepto da 'França em primeiro lugar', modelo de De Gaulle. É uma opinião exagerada, mas é certo que Sarkozy, quando era ministro da Economia em 2004, provocou a cólera de Bruxelas e Berlim ao salvar a companhia francesa Alstom, dando preferência aos 'campeões franceses' contra os alemães.
Resta outro pilar, também uma herança do general De Gaulle, até aqui preservado por Chirac: as ex-colônias, que sempre se beneficiaram de uma atenção extraordinária de Paris. Será estranho se isso continuar após Chirac. Há meio século os países africanos se tornaram independentes. À época de De Gaulle, Paris dispunha de conexões poderosas no continente negro, vestígios do colonialismo, e enormes meios de influência econômica.
Mas, com o passar do tempo, a ajuda francesa à África assumiu cores cada vez mais paternalistas, o que ficou insuportável para os africanos. Tanto mais que algumas intervenções de soldados franceses resultaram em calamidades (Ruanda) ou desgraças (Costa do Marfim). Mas não é tudo: a pobreza da África, os estragos que uma globalização selvagem provocou no continente e a brutalidade contra os imigrantes criaram entre a França e as antigas colônias um fosso de ressentimentos.
Todas essas razões se conjugam para que as relações entre a África e a França sejam remanejadas neste momento de mudança de gerações que se prepara no Eliseu. É o que França deseja e a África, também. 'A França não pode mais decidir sozinha pelos africanos', escreveu o Le Soleil, do Senegal. 'Não é por acaso que na África se manifeste um descontentamento com a França, indiferente à miséria de populações que falam, entretanto, a língua de Molière.' Os africanos que conseguiram desafiar o deserto, o mar e a morte para chegar à França, ali tiveram um encontro com a humilhação, as investidas policiais, os vôos charter de retorno ao país natal, uma vida degradante. 'Tudo isso abriu os olhos dos africanos: eles compreendem hoje que o desenvolvimento da África é, em primeiro lugar, sua responsabilidade.'
E o jornal, depois de derramar seu rancor e sua cólera, termina com uma nota mais racional: 'Os povos podem construir, tendo por fundamento a verdade, um novo contrato de gerações entre a França e a África.' O título do artigo do Soleil define os novos caminhos que traçarão, com a partida de Chirac, as relações entre a França e suas antigas colônias: 'A França frique do papai acabou.'