Título: Escudo antimíssil é questão política
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Fonte: O Estado de São Paulo, 06/05/2007, Internacional, p. A20
A irritação da Rússia com o escudo antimíssil que os EUA querem instalar na Europa tem algumas razões políticas e nenhuma relação com estratégia militar. É o que pensam o cientista político português Álvaro Vasconcelos, diretor do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais de Lisboa, e o pesquisador irlandês Daniel Keohane, do Instituto de Estudos de Segurança da União Européia. Os dois analistas acreditam que a chiadeira do presidente russo Vladimir Putin é uma mensagem com destino certeiro: as ex-repúblicas soviéticas.
'Do ponto de vista estratégico e militar, não existe um confronto Leste-Oeste, mas do ponto de vista político, sim. Polônia e República Checa querem marcar sua posição anti-Rússia, e os russos querem manter sua influência entre as ex-repúblicas soviéticas', disse Vasconcelos, por telefone, ao Estado.
Para Keohane, a preocupação de Putin é com o crescimento da influência européia na região. 'Polônia e República Checa são parte da Europa e já estão fora de alcance. Putin quer mostrar que ainda é um protagonista no tabuleiro regional e está enviando uma mensagem clara para países como a Ucrânia e a Geórgia', afirmou. Para ele, o recado é simples: a Rússia está de volta ao jogo.
Nos anos 90, o império soviético despedaçou-se em 14 repúblicas que passaram a gravitar em torno da combalida Federação Russa. O fim da União Soviética também enterrou o Pacto de Varsóvia. O espólio da Europa Oriental foi herdado pela Otan, primeiro, e absorvido pela União Européia, em seguida.
Contudo, após uma década em apuros, o país recuperou o fôlego. Movida a petróleo e gás natural, a Rússia tenta reacomodar-se no cenário regional. De acordo com Keohane, os russos ficaram atordoados com a velocidade com que se alastrou a democracia na vizinhança. Em 2003, a Revolução Rosa varreu a Geórgia e pôs fim a uma década de governo de Eduard Shevardnadze.
No ano seguinte, outro susto. A Revolução Laranja colocou Viktor Yushchenko, inimigo declarado de Moscou, no comando da Ucrânia. Temendo o avanço da Europa e da Otan, o Kremlin reagiu.
Keohane reconhece que o radar na República Checa é capaz de distinguir alvos na Rússia, mas lembra que os americanos têm dezenas de satélites e centenas de aviões que podem fazer isso de maneira mais precisa. 'Esse é o menor dos problemas de Putin', afirmou.
Todo a polêmica envolvendo o escudo antimíssil começou a tomar forma em 2002, quando o presidente americano George W. Bush anunciou que abandonaria o Tratado Antimísseis Balísticos (ABMT). Justificou sua retirada dizendo que Rússia e EUA não eram mais inimigos. Em seguida, ressuscitou o programa de defesa antimíssil.
Em janeiro de 2007, Washington anunciou que negociava a instalação de dez interceptadores de mísseis na Polônia e um sistema de radar na República Checa. Os russos se irritaram. O bate-boca fez lembrar os tempos da Guerra Fria. Em fevereiro, Moscou ameaçou abandonar o Tratado sobre Forças Nucleares Intermediárias (INF), que proibiu mísseis nucleares de médio alcance - entre 500 e 5.500 quilômetros. No mês passado, Putin ameaçou engavetar o Tratado sobre Forças Convencionais na Europa (CFE).
Diplomatas da ONU, estrategistas da Otan e líderes ocidentais ficaram em polvorosa. 'Eu não entendo. Afinal, se Rússia e Estados Unidos não são mais inimigos, qual a razão de tanto estardalhaço?', pergunta Vladimir Frolov, diretor do Laboratório Nacional de Política Externa, em Moscou, em entrevista por telefone ao Estado.
'O problema é que a Rússia recusa-se a seguir a cartilha do Ocidente. O CFE não faz mais sentido. Quem precisa ter 20 mil tanques na Europa?', disse Frolov, que reconhece, entretanto, que abandonar o INF seria um erro. 'Abdicar do INF colocaria mísseis americanos a uma distância de cinco minutos de Moscou. E isso não é uma boa idéia.'
Para os americanos, o objetivo do escudo antimíssil é evitar um ataque do Irã contra a Europa. No entanto, de uma tacada só, a Casa Branca conseguiu irritar a União Européia, que se esforça para ter uma política externa comum e foi surpreendida com a notícia de que os americanos negociavam bilateralmente com dois de seus membros, e a Rússia, inquieta com a interferência do Ocidente no que era sua esfera de influência.
'Polônia e República Checa têm direito de negociar com os EUA. O problema é que a Europa, que não se recuperou da divisão causada pela Guerra do Iraque, voltou a rachar', afirmou Vasconcelos.
Frolov reconhece que o objetivo do escudo antimíssil é conter o Irã, mas afirma que é arriscado pressionar a Rússia exatamente quando o Ocidente mais precisa dela para tentar interromper o programa nuclear iraniano. 'Não dá para conceber a contenção do Irã sem a participação de Moscou', disse.
O DESARMAMENTO NA PONTA DA CANETA Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP) Ano: 1968 Signatários: 188 países. Índia, Paquistão e Israel ficaram de fora. Coréia do Norte se retirou em 2003 O que é: Primeiro grande marco da Guerra Fria, é a pedra fundamental no esforço de impedir a disseminação de armas nucleares Situação: Ainda em vigor, é o xodó da diplomacia americana
Tratado sobre Antimísseis Balísticos (Anti-Ballistic Missile Treaty, ABMT) Ano: 1972 Signatários: EUA e União Soviética O que é: Limitou o uso de antimísseis balísticos, interceptores capazes de atingir outros mísseis Situação: Os EUA retiraram-se em 2002
Tratado sobre Forças Nucleares Intermediárias (Intermediate-Range Nuclear Forces, INF) Ano: 1988 Signatários: EUA e União Soviética Situação: Em vigor, mas em fevereiro a Rússia ameaçou retirar-se em retaliação ao projeto de escudo antimíssil na Europa Oriental O que é: Um dos mais importantes da Guerra Fria, proíbe mísseis nucleares com alcance de 500 a 5.500 quilômetros. Pelo tratado, os EUA destruíram 846 mísseis e os soviéticos, 1.846
Tratado sobre Forças Convencionais na Europa (Treaty on Conventional Armed Forces in Europe, CFE) Ano: 1992 Signatários: Otan e União Soviética (e ex-repúblicas) O que é: Limita o uso de forças convencionais - tanques, aviões e helicópteros de combate - dentro da Europa Situação: Em vigor, mas a Rússia ameaçou abandoná-lo caso os EUA prossigam com o projeto de escudo antimíssil na Europa
Tratado de Redução de Armas Estratégicas (Strategic Arms Reduction Treaty, START I) Ano: 1994 Signatários: EUA e União Soviética (e ex-repúblicas) O que é: Limitou o uso de 6 mil ogivas para cada lado e reduziu para 1.600 o número de mísseis balísticos de longo alcance Situação: Válido até 2009
Tratado de Redução de Armas Estratégicas (Strategic Arms Reduction Treaty, START II) Ano: Ratificado pelo Congresso dos EUA em 1996. O Parlamento russo nunca o ratificou em protesto pelas ações americanas em Kosovo e pelo avanço da Otan na Europa Oriental Signatários: EUA e Rússia O que é: Proibia o uso de veículos de reentrada (componentes capazes de carregar várias ogivas nucleares e atingir alvos diferentes com um único lançamento) nos mísseis de longo alcance Situação: Nunca entrou em vigor
Tratado sobre Reduções Estratégicas Ofensivas (Treaty on Strategic Offensive Reductions, SORT) Ano: 2003 Signatários: EUA e Rússia O que é: Estabeleceu um limite de ogivas entre 1.700 e 2.200 para cada lado Situação: Tratado válido até 2012.