Título: 'Espírito animal' no Brasil
Autor: Goldfajn, Ilan
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/05/2007, Espaço Aberto, p. A2

Não sei identificar precisamente a sua natureza ou extensão. Mas há algo qualitativamente distinto no atual ambiente de negócios no Brasil. Não é similar ao observado no passado. Há hoje mais otimismo quanto às perspectivas futuras. Não apenas um ânimo com um bom momento passageiro da economia, como tantas outras no passado, mas com uma mudança mais duradoura. Um ânimo que se reflete em mais investimento - doméstico ou estrangeiro no País -, em prazos mais longos de análise, mais contratações de trabalhadores, aumentos salariais, crédito bancário farto e emissões de ofertas primárias (IPO) na Bolsa de Valores, nas quais empresários estão captando recursos para investir nas suas respectivas áreas de atuação. Sem falar no otimismo que reina no mercado financeiro, com níveis recordes na Bolsa e juros futuros em queda.

Qual é a razão para essa onda de otimismo? É euforia? Será um ânimo empresarial que J. M. Keynes, lendário economista inglês, denominou ¿espírito animal¿ (um espontâneo desejo de produzir e investir mais, além do induzido diretamente pelo retorno esperado) se abatendo sobre o Brasil?

Há a percepção de que a economia deve crescer mais forte este ano e talvez não seja apenas uma recuperação cíclica. Os dados são positivos. As vendas das empresas no varejo dispararam, crescendo na média em torno de 7%, já faz 39 meses (e 9% no último mês). A expectativa é de continuidade desse processo, tanto que as empresas já estão aumentando a sua capacidade de produção investindo mais: a produção de bens de capital cresceu 7,2% e a importação desses bens, 21,2%. Não é só capital. As firmas estão contratando também: o emprego no Brasil está crescendo a 3,2% por ano. E há aumento de salários na economia, os rendimentos na economia crescem a taxas de 5% ao ano, acima da inflação. A produção na indústria, que estava defasada em relação às vendas (a diferença satisfeita com mais importações), começou a reagir, com crescimento no último mês de 15,6% anualizado.

A razão para esse movimento é mais fácil de identificar que sua extensão. O ¿espírito animal¿ no Brasil tem fatores bem objetivos. Em primeiro lugar, o período de prosperidade mundial tem beneficiado sobremaneira os países em desenvolvimento - via demanda por suas exportações, ganhos nos termos de troca no comércio e financiamento barato graças à liquidez abundante. Em segundo lugar, há fatores específicos do Brasil. A consistente adoção, nos últimos anos, da mesma política macroeconômica por diferentes governos - grosso modo com a mesma política monetária, cambial e fiscal (até com o mesmo excesso de gastos) -, apesar da retórica da herança maldita, tem reduzido o risco de investir no Brasil. Os juros reais (isto é, acima da inflação), que estavam em dois dígitos há poucos meses, encontram-se em torno de 7,5% e o mercado já negocia títulos que pagam 6% acima da inflação a partir de 2009. Estamos convergindo rapidamente para juros mais parecidos com o resto do mundo.

É mais relevante pensar no futuro: qual será o desenrolar e quais os limites desse novo ambiente? Quais os possíveis cenários? Vejo quatro possibilidades:

Prosperidade sem reformas - Mesmo sem avançar nas reformas, o atual modelo é capaz de gerar aumentos da capacidade de produção de forma a permitir um período de crescimento sustentado. Ou seja, não se enfrentam limites, a inflação permanece baixa e os juros continuam caindo. Esse cenário de crescimento forte e inflação baixa é consistente com uma economia com ganhos de produtividade.

Limites internos ao crescimento - O crescimento da economia enfrenta logo limites ao crescimento sem inflação, como de oferta de serviços não disponíveis via importação. A inflação ameaça subir e os juros são maiores que os esperados. O ânimo com um crescimento maior e sustentável (sem inflação) é abortado.

Mexicanização - O crescimento enfrenta limites, mas não necessariamente no curto prazo (neste ou no próximo ano), como de mão-de-obra qualificada, energia para satisfazer uma demanda maior que a projetada, de infra-estrutura ou mesmo de oferta de serviços sem inflação no médio prazo. O crescimento no médio prazo é em torno de 3%-4% ao ano, a exemplo do México. Tanto neste caso como no anterior, fica evidente que o País precisa de reformas.

Reversão no cenário mundial - Basicamente, chegamos tarde à festa. A maré muda na economia mundial (por exemplo, uma desaceleração continuada ou mais forte da economia americana), com impactos no Brasil. O ânimo com a economia brasileira termina em função de um choque externo.

Qual o cenário mais provável? No curto prazo, a inflação deve permanecer baixa. A boa situação do balanço de pagamentos reforça a contenção da inflação dos bens comercializáveis (os que têm potencial para importação ou exportação) e parece que há espaço no setor de serviços para um crescimento maior este ano. Mas estamos jogando com a sorte quanto ao cenário internacional e à capacidade de crescer sustentadamente, sem maiores investimentos em infra-estrutura e sem avançar nas prometidas reformas (tributária, Previdência, contenção de gastos). Mas, certamente, a sorte estará conosco. Afinal, é melhor não acabar este artigo numa nota ruim, pois ninguém quer contribuir para ameaçar o despertar do ¿espírito animal¿ e o atual ânimo reinante no Brasil.