Título: Um líder que se despede
Autor: Passarinho, Jarbas
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/05/2007, Espaço Aberto, p. A2

Na minha geração, na idade de ouro entre o limite da adolescência e a juventude, estadistas estrangeiros que me empolgaram foram Frank Roosevelt e John Kennedy (ambos pertencentes ao Partido Democrata), nos Estados Unidos, e na Inglaterra, Winston Churchill. Na maturidade (para mascarar a velhice) a admiração dedico a Tony Blair, um trabalhista modernizador da esquerda clássica, e Churchill, um Tory, bastião dos conservadores.

Nos últimos dez anos, despontou na Grã-Bretanha, e em seguida no mundo, o jovem premiê Tony Blair, sucedendo à extraordinária estadista Margaret Thatcher, que, em mais de uma década de governo muito bem-sucedido, reabilitou a economia, encontrada sob forte estatização. Optou pelo neoliberalismo, o crescimento do desenvolvimento, e não o assistencialismo. Aproveitou, porém, as estatizações bem-sucedidas, não privatizando as ferrovias nem desmontando o Serviço Nacional de Saúde. Enfrentou a Ásia comunista, não lhe fazendo concessões - nas suas palavras, ¿nas visitas aos líderes chineses lhes fazem branda censura à violação dos direitos humanos, e depois dizem ao mundo exterior que se comportaram como leões¿. Aliou-se a Reagan e ao unilateralismo americano, ¿não só defensável, mas desejável¿. Como comentou um analista político, soube ¿frear o trem antes que ele batesse no muro¿. Deixou o governo, por motivos de saúde, com um manifesto que, para seus críticos, só serviria para os radicais da direita do Partido Republicano dos Estados Unidos.

Tony Blair venceu sem confrontar-se com Margaret Thatcher, e sim com os apagados sucessores da Dama de Ferro. E veio com um trabalhismo renovado, nada assistencialista. No seu primeiro discurso dirigido aos líderes sindicais, o maior contingente do Partido Trabalhista, não fugiu à globalização, ao que ¿ela tem de vital para o país, seu papel na construção da sociedade mais justa¿. Falou dos quatro desafios a vencer para fazer da Grã-Bretanha o modelo do que deve ser um país desenvolvido no século 21. O primeiro era criar uma economia completamente adaptada ao novo mercado mundial, mediante a flexibilização do espírito empresarial, de uma parte, e, de outra parte, o desenvolvimento do potencial criativo do país. O segundo era criar um sistema moderno de previdência social, em que ¿o papel do Estado será diferente, não necessariamente provedor de tudo, financiar tudo, mas organizar o sistema para que seja mais justo e mais eficaz¿. Evidenciando sua intenção de combinar empresas prósperas e sindicatos responsáveis, correu o risco de desagradar aos trabalhadores sempre fiéis aos governos trabalhistas assistencialistas. ¿Minha mensagem¿, disse ele, ¿é muito simples: desejo que os sindicatos e o movimento sindical participem desse combate. Não deveis jamais esquecer que a justiça social começa pela possibilidade de cada um ter um emprego, de sindicatos e patronato criativos e não prisioneiros do passado, pois o interesse individual e o interesse coletivo são complementares.¿ Teve a coragem claramente de ser um primeiro-ministro trabalhista que não rezava pela cartilha do respeitado marxista Harold Laski: ¿Somos de esquerda, mas da esquerda moderna.¿

Tony Blair deu, então, ênfase à Terceira Via, que se coloca ideologicamente entre o marxismo e o capitalismo liberal. Não deveria ser confundida com a variante socialista da social-democracia do velho estilo, mas reformista, que o vulgo batiza de coalizão de centro-esquerda. Seu governo venceu os desafios a que se referiu, ganhando popularidade em todo o mundo, acima da esquerda e da direita, oferecendo no campo do pensamento uma solução que ofuscasse a cediça disputa que desde o século 18 divide as correntes ideológicas hostis, hoje mais que nunca, de características não mais hermeticamente separadas, sem sentido depois do aparecimento da China de ¿socialismo de mercado¿.

Tony Blair deixará, por escolha própria, a função de premiê da Grã-Bretanha em junho. Longe da popularidade imensa com que solidificou seu governo, é agora apelidado pelos adversários como o ¿poodle de Bush¿. Não disseram nada parecido a lady Thatcher quando foi aliada de Reagan. A comparação parece-me interessante para uma explicação da discrepância. Reagan não teve um Iraque que lhe diminuísse a popularidade. A Blair, apesar da paz, que parecia inconcebível, entre católicos e protestantes, em luta armada há 30 anos na Irlanda do Norte, não se lhe dá o crédito, porque ainda mantém tropas britânicas no sul do Iraque. Ademais, Blair venceu a estratégia terrorista que, em todas as eleições no Ocidente, ajudou clandestinamente os candidatos de oposição aos governantes que se mantinham aliados aos Estados Unidos. O atentado nos trens de Madri, na semana anterior às eleições, mudou as preferências eleitorais, em derrota inesperada, a vitória certa de Aznar. Na Itália a impopularidade do governo bastava para a derrota. Bush perdeu a maioria que tinha nas duas Casas do Congresso e os vencedores já estão negociando a retirada dos marines no próximo ano, coincidente com a sucessão de Bush. Os críticos esquecem que Bush e Blair foram vítimas dos serviços de inteligência de seus países. A CIA e o Pentágono afirmaram ao presidente que Saddam tinha as armas de destruição em massa. Submeteram o respeitado Colin Powell a mostrar, no Conselho de Segurança da ONU, fotos de caminhões inofensivos, como prova de arma biológica. O mesmo se deu com a inteligência britânica, tanto que Blair, vezes várias, na Câmara dos Comuns sustentava que as armas apareceriam.

A História fará a justiça a Blair. Que se negam a fazer-lhe os que se serviram do efeito trágico das mortes no Iraque. Ele deixa, porém, o novo trabalhismo que Gordon Brown, possível sucessor, mudará dizendo-se ¿disposto a mudar a política baseada em imagem pessoal¿.